07 abril 2010

Sem Dedicatórias


Pablo Picasso, Visage De La Paix (Serigraph)

(...) A alguém que corta as asas a uma pequena ave, que ensaia os primeiros voos, é-se desobrigado de dedicatórias.

Quero acreditar que não o terão feito por mal. O que me custa a aceitar é que sempre se vangloriassem desse facto, como se o tivessem feito com a melhor das intenções. Mas não são as boas e as más intenções que contam para as estatísticas, só os actos concretos. E há actos concretos que resultam de intenções inconscientes, saídas de atitudes assumidas, de religiões ou filosofias de vida. O corte das minhas asas foi uma mutilação genital. Um acto, não de pura maldade, mas de maldade pura. Uma maldade como se faz às galinhas, quando se lhes cortam as penas das asas, para que elas não voem por cima do muro, para as manter sempre no lugar a que pertencem – a capoeira; para que não se aventurem por outros lugares e se percam neles; para que não cruzem outros mundos e se afastem dos donos. Como pode voar uma ave de asas cortadas?!

No entanto eu voei. Unicamente por mérito próprio, voei. Colei as asas e voei (mesmo podendo talvez haver quem não tenha visto isso com bons olhos). Tarde, é certo, mas voei… voo. Apesar de todas as contrariedades: asas que tive de saber colar; ventos que tive de amainar; tempestades que teimaram em me amedrontar; calor escaldante que tive de arrefecer; frio cortante que tive de ignorar; florestas que tive de desbravar; desertos que tive de regar; uma infinidade de horas e dias e anos e sonos que tive de me roubar. Voei. Um voo incerto, inseguro, mas que tem adquirido cada vez mais consistência. Um voo que foi uma das coisas mais belas de que pude desfrutar.

Mais do que a meta que o voo pretenda alcançar, é o caminho percorrido, o céu explorado, o melhor da jornada.

A minha alma sente gratidão por me distinguirem no voo, por entre tantas outras aves que brilham ao sol; a mim, uma pequena ave de asas coladas.

(M. Fa. R. - 04.01.2010)