14 abril 2009

Nem morte nem vida

O corpo, morto, era o da sua mãe. E a mão, com sangue e pistola era a sua. Estupidamente, era o que fixava com o olhar petrificado. Ali estava, como em transe, sem sinais exteriores de emoção: nem choro, nem riso; nem tristeza, nem alegria. Para ela, naquela hora, não havia nem morte, nem vida. Quando chega a hora de matar é porque os ponteiros do relógio não apontam na direcção certa e o tempo corre desajustado. As horas antes e as horas depois correm desreguladas. Antes, porque alguma coisa leva aquela máquina a desacertar; e depois… depois já nada, nunca mais, será como antes. Antes – minutos antes, ou horas, ou uma eternidade antes – a adrenalina tomara o comando naquela engrenagem. Depois – agora – era estupor que dominava.
Antes, estudava no sofá da sala, sabendo-se sozinha em casa, quando o viu entrar e dirigir-se-lhe com um sorriso cínico, enquanto baixava as calças. E foi aterrorizada que o sentiu a atirar-se brutalmente a si, com um hálito nauseabundo a álcool e a fumo que não era de tabaco, e com aquele corpo pesado e asqueroso a esmagá-la, enquanto lhe rasgava a roupa, mais do que a despia, e lhe abria, de seguida, as pernas com violência. Gritou e debateu-se, e ele esbofeteou-a furiosamente, por várias vezes, fazendo-lhe saltar o sangue pelo nariz, e ameaçando-a de morte com a arma que tirara do bolso do casaco, se não ficasse quieta, intentando consumar aquilo a que se tinha proposto. Nunca pensou que uma coisa assim lhe pudesse acontecer. Aquele homem, que morava há poucos dias em sua casa, que dormia na cama da sua mãe, e que ela aceitara como fazendo parte da família, uma vez que a mãe assim lhe pedira, sempre tinha sido correcto, apesar de se ter já sentido intimidada com os seus olhares, em algumas ocasiões. Quando a busca do prazer não conhece limites, o ser humano é capaz de cometer qualquer atrocidade, com a mesma facilidade com que se deixa seduzir por uma roupa de marca. Quem sabe porquê, a mãe veio surpreender aquela cena e foi apanhada naquela teia: desesperada com o que via, acabou por se envolver numa luta corpo a corpo com ele até tombar ferida mortalmente por uma bala. Ele largou a arma do crime ali mesmo, em cima do sangue que jorrava daquele corpo ainda quente, vestindo-se à pressa na tentativa de escapar. Ela arrastou-se naquele mar de sangue, pegou naquela pistola e matou o assassino.
E, agora, estupidamente, naquela hora, para ela não havia nem morte nem vida. A mãe estava morta e ela era uma assassina. Saiu da apatia e vomitou. 
  (M. Fa. R. - 06.04.2009)

19 comentários:

  1. Bom Dia Fá!

    Quisera eu ler este texto como uma estoria, e não um fato.
    Como soube por outras mães e filhas.
    Aff, isso duro, mas desejo a mudança e a chance da felicidade aquele que por razão que não cabe a mim julgar, foi interrompida.
    Acredito no Amor para a transformação.
    Terapeuta por opção,
    voluntaria por dedicação.
    Vamos mudar essa história.

    Bjinhos uma semana ensolarada em você!

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  2. Frontal e muito forte este teu texto! Excelente. Beijos.

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  3. Olá, Fa;

    Bem forte e profunda, esta crónica deveria servir para uma aula de psicologia criminal.

    Grande coragem da tua parte de a publicar e com grande profissionalismo jornalistico.

    bjs
    Osvaldo

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  4. ADiniz,
    esta estória repete-se vezes demais...
    Demos amor, saibamos acolher, façamos o que estiver ao nosso alcance para mudar o mundo à nossa volta.
    Beijinhos



    Paula,
    custou-me muito escrevê-lo...
    Obrigada.
    Beijinhos



    Osvaldo,
    por acaso até serviu para complementar uma aula de teorias explicativas do crime...
    Obrigada
    Beijinhos

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  5. Querida Fa menor,

    Muitos parabéns pelo texto.

    Cada vezes se veem mais situações como a que está relatada neste seu texto.

    É que o condicionamento psicológico que a sociedade do TER fomenta por todo o lado (TV, rádio, publicidade, o próprio estado, etc., etc.) é tão forte que o ser humano perde a noção dos valores e da ÉTICA e estas coisas dão-se com demasiada frequência.

    Só quando a própria sociedade mudar de paradigma do TER para o SER se começarão a ver efectivas mudanças.

    Um grande abraço

    José António

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  6. Fa, grande mudança de registo! Bom ritmo, será que acertaste no tipo de relato?

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  7. José António,

    Para muitos, o mal é muito mais sedutor e mais fácil de imitar... e o que é usual começa a ser considerado normal...
    Obrigada
    Abraço



    Não me parece muito, António... transtorna-me este tipo de porcarias de vida.
    Obrigada pela visita aqui.

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  8. Há vidas que são apenas uma soma de dias nos quais se sobrevive, apenas, vidas de luta, de violência, de dias cinzentos e noites sem lua... A distância entre a vitima e o assassino parece demasiado curta nestas situações!
    Fizeste-me pensar!
    PARABÉNS

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  9. Tentar compreender...perceber os porquês é tarefa que me parece impossível...na verdade morreram os três...como se geram pessoas capazes de violar crianças...matar os filhos...traficar outros seres humanos...como?...quem, tendo escolha, pode escolher assim?...é este o mais perfeito dos mundos?...neste preciso momento alguém está a ser violado, roubado, assassinado, explorado...

    abraço

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  10. Fa,

    Mulher de coragem...
    É preciso mesmo "gritar", cada qual a seu modo, para que possamos tentar um mundo melhor.
    Gostei.
    Forte, chocante, e necessário.
    Eu... se pudesse faria do texto um outdoor.

    Beijo na alma Fa....

    Solange

    http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

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  11. Essa historia é triste, é uma tragédia e é uma pena que acontece todos os dias com milhares de pessoas. As pessoas perdem seus limites por prazer e as tragédias só aumentam, uma menina inoscente vítima de uma monstro marginal, de repente se torna uma assassina.

    Beijos

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  12. só alguém k ama o outro, k tem um grau de emaptia muito grande, consegue ralatar com tal realismo, crueza e dor o k aqui dizes.
    deixo um bj

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  13. Eu continuo a afirmar que há muita falta de saúde mental! É o típico quadro actual, envolve padrasto, enteada e mãe. Neste caso, violação de menor e duplo homicídio! Enfim!

    Beijinhos

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  14. Um texto, que, infelizmente, nos apresenta situação de muitos lares, mais do que se possa pensar. O ser humano emm sua extrema brutalidade. Bom dia

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  15. A chamada escrita demolidora
    Adorei

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  16. Vim ler te, forte demais este teu texto... Beijo

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  17. Una realidad qué golpea duro a esta sociedad actual, en si misma contribuye a diario al desastre... Abrazo

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  18. Que texto incrível, Fá! Quantos casos reais se poderiam rever neste notável pedaço de escrita! Infelizmente em cada minuto, algum caso assim estará acontecendo pelo mundo! Para ler, reler e reflectir...
    Um beijinho grande! Estimo que tenha passado um excelente Natal, Fá! Não cheguei aqui a tempo, pois tenho andado meio KO, com problemas musculares, e a rotina diária, lá tem de prosseguir mesmo em slow-motion...
    Feliz 2024! Tudo de bom!
    Ana

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«a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa – ou seja, as coisas que fazemos por obrigação, que não nos interessam, para sobreviver – e a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.»
(Edgar Morin)
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