23 novembro 2010

Pouca Terra

Entrei naquele comboio à procura não sabia bem do quê, esperando ausentar-me, mesmo que apenas por algumas horas, de uma solidão penteada e maquilhada.
Entrei e não vi ninguém. Vi. Mas não vi. Os meus olhos não pararam em quem quer que fosse. Mesmo caminhando de frente, eram só cabeças em corpos sentados. E lugares vagos – alguns. Instalei-me num, ao acaso. No lugar ao lado, junto à janela, já estava alguém. Olhei-o de relance – de óculos de sol, todo barbas e ainda cabelos – e senti-me corar, mas talvez que os óculos escuros lhe tenham ocultado o fogo do meu rosto. Deus queira, pois se não o que haveria ele de pensar? Esboçou um sorriso. Retribuí, sem que qualquer palavra se atrevesse a aflorar, apesar de os pensamentos se me atropelarem, como numa gincana de bicicletas, em que um ciclista cai e todos os outros, sem terem tempo de se desviarem, se enfaixam num feixe desalmadamente. Desconsoladamente. Que fazia ele ali, saído de um filme antigo, num comboio regional, anónimo, sozinho?
A chegada do revisor vem colocar um pouco de ordem nesta cabeça.
Há muito, muito tempo, quando eu era pouco mais do que uma criança, sonhava com um príncipe encantado como ele, naquela série, com uma voz de ouro timbrado que me fazia pular o coração. Ele desenhar-me-ia palavras que me seriam carícias.
E agora, por que é que não acontece nada?
As cores com que se pinta o mundo quando se é adolescente vão-se esbatendo com o tempo, tornando-se mais foscas, menos garridas e, por vezes, escorridas, esborratadas. Esvaídas.
Espreito-o pelo canto do olho. Parece absorto, ou disfarça.
Se fosse naquele tempo, o mais provável seria que o meu coração, cheio de acordes maiores, me tivesse afogado a voz; agora, aqui, a minha voz imerge na profundidade das décadas passadas à procura de um coração arroubado, mas também não consegue retirar dele som nem tom.
O comboio abranda a marcha e percebo que estou quase a desembarcar. Levanto-me para o corredor e o meu companheiro de viagem dá sinais de se preparar para também sair, e então dirige-se-me com aquela voz que me paralisa:
- Muito obrigado pela companhia e por me dar a beber do aroma silencioso do seu perfume.
E vai embora sem eu ser capaz de lhe dizer que, há mais de trinta anos, era ele - Sandokan - que me prendia a atenção ao ecrã.
(M. Fa. R. - 26.10.2010)

12 novembro 2010

100 Palavras… ou com poucas mais

Um dia de Formação das 10 às 17 com intervalo para almoço.
Uma única janela no aconchegado gabinete com a persiana corrida. Aconchegado – bem aconchegado – para quatro pessoas; persiana corrida para tornar o ambiente adequado à projecção. Assim não me posso distrair a ver o tempo que faz lá fora.
Ainda bem que não sofro de claustrofobia!
Sorrio. Sorrimos.
Apresentamo-nos: Manuela – formadora; Carla, Maria e Ana – formandas.
Blá, blá, blá… ponho os óculos; presto atenção ao ecrã (as imagens são sugestivas); sigo todos os passos (o dia vai de corrida sem ninguém o apanhar); coloco dúvidas; respondo a questões; troco ideias e ideais… sugestões; tiro os óculos. Sorrio.
Passou a manhã.
Pausa.
Espero.
Veio a tarde.
Sorrio. Ponho os óculos. Embalo-me em mais Marketing Social e deixo-me levar. Parece que temos de usar mais a regra dos três C – a regra de ouro para que a informação que queremos passar surta o efeito desejado – ser clara, curta e concisa. Tiro os óculos.
O dia já lá vai… Ainda foi só o primeiro dia.
Sim, um novo dia de formação fica marcado.
Sorrio.
Um dia bem formado!
(M.Fa.R. - 11.10.2010)

03 novembro 2010

(S)Em Dor

Procurei e encontrei a cura para a dor. E cheguei até à cura pelo coração: o coração não dói. Está provado cientificamente que o coração não dói. Sente dor mas não dói. O que dói é o que o envolve. Por isso a dor é nervosa. E psicológica: passa pelo pensamento. A dor é nervoso-psicológica: os nervos levam-na ao cérebro – ao pensamento. Pensar na dor faz doer. Há, por isso, dores do cérebro, não do coração – o coração não pensa. Não pensa: não dói. Só sente dor, mas não dói. Dói o que pensa. E o que pensa é o cérebro. É, então, o cérebro que dói. Ora, se as dores são do cérebro, e se se procura a cura para a dor, essa cura passa pelo cérebro. Nada mais fácil de curar: tira-se a dor do cérebro! Como? Tira-se o cérebro. Sem coração não se vive, que é o órgão vital do corpo. Mas pode bem viver-se sem cérebro(!). E, assim, jamais haverá dor. Só com o coração no comando poder-se-á viver. E como o coração não dói, nada mais em nós poderá doer. 
 (M. Fa. R. – 2010-07-09)