27 abril 2009

Lado de fora do mundo

(Imagem Gritos en Silêncio)

O sol nunca nasce para todos.
Não nasce para as crianças negligenciadas, maltratadas, esfomeadas de pão e de amor. Exploradas, traficadas, abusadas, abandonadas, abortadas. Não nasce para os idosos abandonados, roubados, maltratados, violentados. Para os pobres cada vez mais explorados, mais vilipendiados.
Há porcarias de vida deitadas num quarto escuro. Outras amontoadas num canto sombrio no fundo do quintal. Há delas esquecidas num fosso profundo, sem verem a luz do dia, nem qualquer claridade da noite.
Há mal que espreita, ronda, cerca, atola. Há mal a fazer das suas, mergulhando em amargura tantas mulheres inocentes que, depois de tanto tempo e lutas, continuam a ser oprimidas, exploradas, abusadas… traficadas. Há porcarias de vida deitadas num quarto escuro. E muitas são imundícies de quem chafurda num chiqueiro chique. Quando é a irracionalidade que comanda, todos os sonhos se esfumam, se asfixiam, transviados, mutilados, nas voltas de uma corrente, que prende, aperta, sufoca.
Quando chega uma desgraça, traz sempre companhia: vem sempre carregada com uma mala de roupa suja. É álcool; é droga; é violência. Conflitos geracionais. Violência nas escolas, violência doméstica… Corrupção; traições. Crimes contra a humanidade, contra a integridade física e emocional do homem. Tudo chagas sociais. Em putrefacção. Lixo. E há muito verme que se sustenta de toda essa sujeira. E que, por isso, tudo faz para que esta se mantenha; até para que se estenda como uma epidemia.

É preciso tirar do sono a natureza, agitar o sol, abanar as estrelas, gritar ao vento: que há gente a apodrecer. Têm de se fazer ouvir gritos de palavras sonantes, chocantes, bramindo como chicotes, que estalem e façam doer. É preciso um verbo forte, para ver se o mundo acorda desta cultura de morte. Não tem coração quem explora, rouba, viola, mutila e assassina um outro igual a si; ou mais frágil; ou a que tem o dever de cuidar. Onde mora o espírito de fraternidade, que promove a liberdade e a igualdade de direitos e de dignidade de todos os seres humanos? É preciso gritar!

Mas muitos dos gritos acabam por secar em gargantas cortadas. Afogam-se vozes amordaçadas. Voam pensamentos em calabouços de lamentos. Quedam-se, sem forças, as mãos. E os pés pesam no chão. E são braços que não abraçam o mundo. Pernas que vestem cansaços. Danças diárias de agitação, de confusão, de medo, de solidão, de minutos contados, esmagados. Tropeços em arame farpado. Bocados de lua mastigados para calar a fome. Retalhos de aflição. Pedaços de ilusão. Aparências. Fingimento. Mas mesmo que se finja, nunca se finge bem. Só mal. Tanto mal. Tanta maldade. Tanta dor. Tanto desamor. Há um lado de fora do mundo, em que o nevoeiro está sempre denso. O sol nunca nasce para todos.

(M. Fa. R. - 19.04.2009)

20 abril 2009

Noite comprida


 

“Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.”
Se o céu anéis tivesse nem que de eclipses de luas,
e degraus na terra houvesse
quando o arco-íris tocasse a terra e a juntasse às nuvens bordando ruas,
então subiria ao céu e por lá procuraria o esconderijo da lua,
o sítio em que se oculta quando não mostra o luar.
Mandaria que tivesse sempre o rosto luminoso, e a face negra calada,
para que sempre brilhasse.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e que essa luz se espraiasse por longe tocando o mundo.
Que essa chuva escorresse, lavando a dor do sal
das lágrimas que nascem do mal que há em redor oprimindo.
E que a neve branquinha, imaculada e pura, purificasse o olhar de quem só se vê a si.
Porque há uma noite comprida, de uma ansiedade vivida, em que o mal ataca o bem,
e que me deixa perdida, dormente e nauseada,
cortada e a sangrar, ferida por fora e por dentro.
Pois que eu, sufocando um lamento,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
E foi tal o meu estertor que até as nuvens coraram tingindo a areia da praia,
e a fímbria do mar, e o meio do mar, de sangue se cobriram,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
É como cicuta que rói, que envenena e mata todo o mundo e o apodrece,
uma maldade latente, uma crueldade vigente, no fundo da alma humana,
que sem respeito e amor, vai roubando a dignidade,
abrindo brechas e rombos ao pobre de qualquer cor.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Que a negou à boca do pobre,
e o arrastou pela lama,
que o abusou nessa cama,
e lhe desfechou facadas cruas, cruéis,
a esmo, com lança de baioneta,
deixando a porta aberta
à chacina e às injustiças sociais.
Maldito seja quem não vê
e quem lava as suas mãos, pensando-as imaculadas.
E aviltado seja aquele que, sem dó nem piedade,
rouba até o sol ao que já mais nada tem.
Pois onde não há justiça,
só a caridade, o amor, a solidariedade, são o único bem.

Ai, se o céu tivesse anéis,
daqueles com que eu soubesse que revolveria o mundo,
dentro deles, descendo, rodopiaria e nunca os largaria enquanto o bem não surgisse,
enquanto o mal não saísse, até que vagueasse errante, sem encontrar poiso algum.
E se degraus na terra encontrasse, daqueles por onde subisse para procurar uma luz,
eu calcorrearia o céu em busca do sol poente,
e quando o encontrasse, pediria que sempre luzisse,
e que nunca mais se escondesse,
que a terra precisa de luz.

(M. Fa. R. - 13.04.2009)

Inspirado em Herberto Helder: Se houvesse degraus na terra...

14 abril 2009

Nem morte nem vida

O corpo, morto, era o da sua mãe. E a mão, com sangue e pistola era a sua. Estupidamente, era o que fixava com o olhar petrificado. Ali estava, como em transe, sem sinais exteriores de emoção: nem choro, nem riso; nem tristeza, nem alegria. Para ela, naquela hora, não havia nem morte, nem vida. Quando chega a hora de matar é porque os ponteiros do relógio não apontam na direcção certa e o tempo corre desajustado. As horas antes e as horas depois correm desreguladas. Antes, porque alguma coisa leva aquela máquina a desacertar; e depois… depois já nada, nunca mais, será como antes. Antes – minutos antes, ou horas, ou uma eternidade antes – a adrenalina tomara o comando naquela engrenagem. Depois – agora – era estupor que dominava.
Antes, estudava no sofá da sala, sabendo-se sozinha em casa, quando o viu entrar e dirigir-se-lhe com um sorriso cínico, enquanto baixava as calças. E foi aterrorizada que o sentiu a atirar-se brutalmente a si, com um hálito nauseabundo a álcool e a fumo que não era de tabaco, e com aquele corpo pesado e asqueroso a esmagá-la, enquanto lhe rasgava a roupa, mais do que a despia, e lhe abria, de seguida, as pernas com violência. Gritou e debateu-se, e ele esbofeteou-a furiosamente, por várias vezes, fazendo-lhe saltar o sangue pelo nariz, e ameaçando-a de morte com a arma que tirara do bolso do casaco, se não ficasse quieta, intentando consumar aquilo a que se tinha proposto. Nunca pensou que uma coisa assim lhe pudesse acontecer. Aquele homem, que morava há poucos dias em sua casa, que dormia na cama da sua mãe, e que ela aceitara como fazendo parte da família, uma vez que a mãe assim lhe pedira, sempre tinha sido correcto, apesar de se ter já sentido intimidada com os seus olhares, em algumas ocasiões. Quando a busca do prazer não conhece limites, o ser humano é capaz de cometer qualquer atrocidade, com a mesma facilidade com que se deixa seduzir por uma roupa de marca. Quem sabe porquê, a mãe veio surpreender aquela cena e foi apanhada naquela teia: desesperada com o que via, acabou por se envolver numa luta corpo a corpo com ele até tombar ferida mortalmente por uma bala. Ele largou a arma do crime ali mesmo, em cima do sangue que jorrava daquele corpo ainda quente, vestindo-se à pressa na tentativa de escapar. Ela arrastou-se naquele mar de sangue, pegou naquela pistola e matou o assassino.
E, agora, estupidamente, naquela hora, para ela não havia nem morte nem vida. A mãe estava morta e ela era uma assassina. Saiu da apatia e vomitou. 
  (M. Fa. R. - 06.04.2009)

10 abril 2009

Abril



Em Abril ainda há frio e chuva, mas tudo é vida nova que se derrama. Mostra suaves manhãs em que apetece dormir, mas que são muito preciosas para caminhar.
Quando as nuvens choram e derramam as suas lágrimas sobre a terra, os campos reverdecem e parecem cantar. Cheira a verde. Começa uma liberdade a florir. Sorriem os lírios; canta o cuco. Apetecem as amêndoas. A Páscoa completa a poesia.
M. Fa. R. (17.03.2009)

04 abril 2009

A Chave




Quando Deus expulsou Adão e Eva do paraíso terrestre, vedou-lhes o acesso à vida sem fim. Não acontecesse comerem do fruto da árvore da vida, como comeram do da ciência do bem e do mal. E a árvore do fruto da vida eterna ficou lá. Fechada à chave e guardada por querubins.
Ora, Adão e Eva, sem terem acesso à vida ilimitada, não a poderiam transmitir à sua descendência. Por isso, a Humanidade ficou condenada.
Desde então, o segredo da vida eterna - não da vida para além da morte, mas da vida sem morte - tem sido sempre objecto de procura incessante do Homem. Mas esse segredo está fechado à chave, e esta, dada como irremediavelmente perdida; não se sabe onde estará: se com os querubins, se nas mãos de Deus… ou nas de S. Pedro, aquele que tem as chaves do Reino dos Céus. O Homem bem a tem procurado, mas sem êxito. E sem ela não há acesso ao fruto que dá vida infinita. Sem chave é morte certa!

Foi aí que dei por mim a pensar: se não há chave tem de se arranjar. Aí está! Encontrei a solução para a vida eterna. A solução está na chave.
Tanto que o Homem tem buscado uma solução para a morte: uma chave. Quer através de mezinhas caseiras, quer em cada vez mais sofisticadas práticas laboratoriais, como a clonagem, a manipulação genética: uma chave! Bem têm procurado uma chave. Mas não era uma chave que faltava, era A chave: aquela chave que abre a porta do jardim onde está a árvore da vida. Só com o fruto dessa árvore se conseguirá eliminar a morte. A chave é a única solução para abrir a porta à vida sem limite temporário.
A chave! A solução está na chave.

Por isso tem de ser feita outra chave. É a única solução: fazer outra chave que sirva naquela fechadura… que sirva naquela fechadura, daquele portão!
Lamento! Mas esta é uma triste conclusão. É que os querubins estão de guarda, armados de espadas flamejantes… como chegar lá? E quem se atreverá a desafiar Deus, ao ponto de sequer tentar fabricar outra chave?
No entanto, a chave é a única solução!
Quem se atreverá? Quem conseguiria? Quem é que se deixa dominar pela imaginação?
Será isto tudo uma utopia? Ou não passará tudo de ficção?
Se alguém acha que é mentira, eu não!... [não]???

(M. Fa. R. - 30. 03. 2009)