27 setembro 2010

A vida da ti Maria Amélia dava uma história


(Imagem de autor desconhecido)

Quando a ti Maria Amélia, de manhã, ia à taberna matar o bicho com o seu copito de aguardente, costumava, muito sorrateiramente, enquanto o taberneiro estava virado para outro lado, estender o braço e meter os dedos ao tabuleiro da marmelada e levar um bocado dela para a boca para fazer peito para a pinga. É claro que o taberneiro começou a desconfiar, por ver repetidamente a marca de uns dedos onde devia ser cortado à faca, e disse para com os seus botões que a havia de tramar. Então arranjou um tabuleiro igual, meteu-lhe dentro massa consistente e, naquele dia, sabendo que ela vinha sempre por volta da mesma hora, outro tabuleiro a esperava. Ela seguiu o ritual de sempre, pagou o copito e foi-se embora sem se desmanchar, mas de garganta bem untada. Pelo caminho, diz quem a viu e ouviu, que ia sempre “arrrtffff arrrtffff, aquele Manel tem lá agora uma marmelada que sabe mesmo à m.... arrtffff”.

Pobre da Maria Amélia, com o seu corpo vestido de farrapos, e sem ter eira, nem lareira onde se aquecer, nem sequer um palmo de seu onde cair morta! O seu homem fizera-se ao Brasil, ainda novo, na busca de uma vida melhor para o filho que lhe deixava na barriga, mas por lá ficara, decerto com outra família que arranjara. O filho crescera e, por sua vez, a deixara, depois de a esvaziar de tudo quanto tinha para cumprir os vícios que o haviam espreitado. Valia-lhe a compaixão de alguns vizinhos que lhe davam algum prato de sopa, ou umas pobres moedas, ou ainda um palheiro para pernoitar.
Errante, com o sol ou a chuva, ou os cães vadios por companheiros de jornada quando, sem tir-te nem guar-te, um carro a atirou de rompante para uma berma da estrada.
Atirou e fugiu, e ninguém viu. E a pobre ali ficou estirada, inerte, sem vivalma que a socorresse. “Está bêbada, que a descabece!”
Quando um bom homem se acercou, era tarde. “Acudam, a ti Maria Amélia morreu!”

(M.Fa.R. - 02.07.2010)

16 comentários:

  1. infeliz mente ,quantas "Ti" Marias Amélias não "sobrevivem" ,ainda ,por aí....

    comovente a tua estória




    .
    um beijo

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  2. Anónimo17:49

    Não sei porquê parece-me bem triste esta história.
    A falta de caridade para com estas pessoas toca-me.
    Pois é... muitas vezes não sabemos ver para além dos trapos...nem dos copos de aguardente ou até das gelhas da cara.

    A Pessoa Humana está lá, e tantas vezes , mesmo muitas, uma Grande Pessoa, claro...mas vê-se apenas o que se quer, ou o que se tem por hábito de ver ou nem se quer ver outra coisa, nem a outra Pessoa.

    É triste mas quantas Ti Amélias vamos ainda encontrar no nosso caminho?
    Essas talvez possamos ainda deitar a mão.

    Agradecida fico a todos aqueles que cuidam dessas Ti Amélias
    Beijinhos
    Utilia

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  3. muito comovente...quantas ti maria amélia existem por aí...

    deixo um abraço para ti

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  4. Olá Fa menor!
    Vim agradecer a sua visita, e mais comentário, no meu blog.
    E chego aqui e vejo este texto emocionante, falando da triste vida da Maria Amélia, conheci uma história igual a esta mas foi com o Manuel Joaquim, também foi atropelado e morreu e nunca ninguém se preocupou em saber quem tinha sido.

    um beijo,
    José.
    Nestas coisas o mundo não evuluio nada, e passarão mais mil anos, e vai continuar igual.

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  5. Triste e comovente...mas a verdade é que ha muitas Maria Amélia por ai...
    Beijo d'anjo

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  6. *
    quantas Marias Amélias,
    eu conheço, amiga, quantas !
    ,
    conchinhas,
    ,
    *

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  7. Que triste história de solidão mas, infelizmente, muitas vezes bem real !

    Beijinhos
    Verdinha

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  8. "Amélia dos olhos doces"
    quem dera que fosses
    por todos, mais bem cuidada...
    Amélia que cruzámos na estrada
    ninguém soube da tua alma amargurada!...

    meu beijinho com carinho

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  9. Vá lá saber-se quantas ti Amelias não andaram por esse mundo adiante?! lindo seu texto, lindo e a fazer, interiorizar um pouco, pois julgamos muito facilmente, e nem tudo o que parece é.bj

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  10. Fá,
    Fiquei fã da sua escrita!
    Admirável a história da ti Maria Amélia.
    Ao lê-la parece que ia vendo numa tela o desenrolar dos acontecimentos!
    E como ainda existem tantas Marias Amélias.
    Beijinhos, Fá, com a minha admiração.
    Ailime

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  11. Uma triste história, bem contada.
    Gostei, querida amiga.
    Beijos.

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  12. Anónimo22:59

    Um bonito texto, gostei. Tudo de bom.

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  13. Lindo Fa muito lindo... devemos sempre reflectir sobre estas histórias... parabéns pela tua escrita!

    Bjs e boa semana!

    José

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  14. Quantas Marias Amélias não existem neste mundo. Tantas, tantas, tantas.
    Quantos corações e almas esvaziadas não existem em corpos sofridos. Tantos, tantos, tantos.
    .
    Um domingo feliz. Cumprimentos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  15. Visual e belo seu conto, Fá, embora abrace tristeza e dor. Esse comportamento se repete, cada vez mais. Indiferença diante das dores alheias. Grande abraço.

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  16. Impressionante, Fá! É realmente o cúmulo da desgraça!

    E esse taberneiro não podia oferecer-lhe um pouco de marmelada!

    Muito bem narrado, com algumas nuances picarescas...

    Boa semana, minha amiga. Tudo bom. Beijinhos
    ~~~~~~~

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«A vida é escrita em curtas frases e não em grandes livros, por isso escreva uma frase de cada dia porque escrever um "livro" completo de uma vez só é perda de tempo!» (Gherheai)
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