28 dezembro 2011

Poema partido





Faz de conta que o frio casa com a fogueira
Faz de conta que a neve se deita com o mar
Faz de conta que o beijo se bebe à distância de um verbo
Faz de conta que o abraço se cinge no olhar

Faz de conta que a chuva se enamora do sol
Faz de conta que o céu se cristaliza de sal
Faz de conta que a paixão é um verso perdido
Faz de conta que o amor é um poema partido
Faz de conta que a dor é um doce sinal

Faz de conta que a lua é um manto
Faz de conta que a maré é um barco ancorado
Faz de conta que o amor é o mar
Faz de conta que as ondas são rios de luar
Faz de conta que a espuma é chegada e partida
Faz de conta que a sorte é um jogo de azar

Faz de conta que a sede se sacia no vento
Faz de conta que a fome se aplaca com o tempo
Faz de conta que o calor é um gemido
Faz de conta que a lágrima é uma prece
Faz de conta sem conta ou medida
Faz de conta que a paz se conquista na vida
Faz de conta que na vida tudo se esquece

Faz de conta…
Faz de conta…
Faz de conta…



Faz de conta que o Novo Ano será para ti aquilo que mais desejares que seja!


Bom Ano de 2012!

07 novembro 2011

Escrever ou Dormir




Gosto de escrever; e gosto (ainda mais) de dormir.
Escrever é-me fuga; dormir, também.
Escrever exige-me esforço, trabalho, suor... mas dá-me prazer ao brincar com as palavras; dormir relaxa-me o corpo e liberta-me a mente para voltar a outros suores, a outros prazeres.
Escrever pode levar-me ao sonho; mas dormir, também.
Se dormir me liberta, escrever não me escraviza. E se noites há sem dormir; dias, também, sem escrever. Quais serão piores?

Gosto de escrever; e gosto de dormir.

Pois: continuarei a escrever enquanto escrever me der prazer; tal como dormirei quando tiver sono...
Para além disso... nem tudo será realidade; e nem ficção, ou poesia; ou se verá à luz do dia.

03 outubro 2011

Pausa




A borboleta branca volteia sob um sol afogueado.
É de dor o murmúrio amarelo, incendiado, do céu.
Geme o dia de outono descontente, porque a vibração soalheira é fria de tão quente.

A borboleta retorna volta e meia, indiferente, sobre os panascos ressequidos.
Doridos estão os pés; ardidos são os olhos; fugidos vão os sonhos.

E a borboleta branca pausa na canícula,
à espera que a empurre, fresca, um manso sopro, só que seja, de brisa.

05 setembro 2011

On/Off



Segunda-feira. A semana de trabalho inicia-se em ponto-morto. Depois, as mudanças começam a engrenar, fragilosamente, num somar e seguir. O rumo? Um pouco ao norte… sem grande norte. Sem grande porte. Mas, com um pouco de sorte, de um céu azul brilhante, talvez forte.
A via repete-se-me, serpentinando. E eu… eu movo-me em fôlego concertinótico, arrancando uma nota para lá e outra para cá, de um mesmo botão. O de ligar e desligar.

26 agosto 2011

Investida



(Rose Waine, News Of The Red Umbrella in sweetscissorlips)


A noite zangou-se. O calor era-lhe demais – trinta e cinco graus medidos no termómetro do tablier, ao estacionar à porta de casa. Ia haver descida de temperatura, tinham afiançado. No entanto, nunca estivera tão quente ao cerrar da noite. De onde se soltava aquele bafo de fogo? Havia, por certo, algum touro monstruoso encoberto. Não, não um, mas um cento, que aquele resfolegar manhoso, que se ouvia perto, não era só do vento. E nisto, pelos ares, um mundo de lixo em movimento. Em investida. A noite zangou-se. Revoltou-se. Uma tourada é sempre violenta. Sangrenta. Um espectáculo medonho e cruel a que muitos assistem como se fosse cinema de cordel.
E vai o touro de levantar nos cornos tudo de revoada. Atira pelos ares o que encontra pela frente. E a gente teme o pior. Porque não há calor que não dê em frio. É que quando uma coisa aquece demasiado tem que rebentar por algum lado.

07 agosto 2011

Quando as ondas do mar se transformam em gaivotas



Foto: Eider Oliveira


Ao cair da tarde
As ondas do mar transformam-se em gaivotas

A poesia veste o areal
E a praia converte-se
Obedecem os barcos ao chamamento do mar
E as redes mudam-se em peixes a pular

Movem-se em corrupio para ver
Pessoas sôfregas em alvoroço
E uns compram a dez outros a cem
Que esta poesia também é para comer

Entretanto ressoa o marulhar turbulento
E no lastro doirado estendidos
Plebeus panos sorridentes
De voluptuosos reflexos coloridos

Debaixo do azul reluzente
No oiro espelhado da areia
Constroem em risos castelos crianças
Vigiadas pelos olhares das sereias

E ora ao banho na hora
Da festa ondulante magia
No sal que jorra e sacia
Corpos e almas afora

Tinge-se em momentos de branco o céu
Quando as nuvens se enxameiam
E novamente de luz
Assim que elas se retiram

E é ao cair da tarde
Que as ondas do mar se transformam em gaivotas
Ao transfigurar-se o sol em bruma
E eu rendo-me à sonolência
Quando o mesmo bando
Se desfigura em espuma



13 julho 2011

Trilhos Pedestres



Há um trilho pedestre, que às vezes me recolhe os passos ao cair da tarde, entrecortado, de longe a longe, de carreiros de formigas e ladeado de rãs a coaxar. Atravessam-no, aqui e ali, nuvens de mosquitos, a dançar em frenesins ao ritmo das águas nos pés de arroz. No rio saltam, uma ou outra vez, papa-cavalos ou, talvez, (também) sapos, não sei, apenas ouço de relance, não vejo. Ao extenso verde acorrem os patos, as garças e as cegonhas das redondezas à procura de alimento. No leito das valas, que as andorinhas rasam a beijar, dormem barcas cansadas de árdua labuta.
Aventuro-me em incursões pelas marachas sem bem saber a sua desembocadura: se em terra firme, se no meio do verde encharcado de prata. De repente um pombo levanta voo do carreiro, perdido do bando, desorientado pelo imenso reflexo manso. Levanto os olhos, também em voo, para de seguida os debruçar sobre os pés que acabam de resvalar para a cor deste desenho que não me canso de mirar.

30 maio 2011

Moldura Matinal



Leve é o acordar na vegetação por entre aromas molhados de burganiça e sabugueiro. 
As lágrimas de chuva suspendem-se nas ramadas, entrecortadas pelos reflexos dourados de um sol tímido. Os chilreios dos pássaros, de múltiplas linhagens, enchem o ar de colorido. Poisam, levantam, vestem as asas com a manhã e espanejam-nas sôfregas do dia. 
Este levanta-se devagar, acelerando à medida que o sol se vai abrindo num sorriso, ainda que inconstante e inseguro.
Um quadro interactivo a emoldurar no aro da janela, enquanto eu abro a boca num bocejo e esfrego os olhos piscos, para me revestir da vida, sempre renovada, que cada manhã me oferece.

16 maio 2011

Palavras, palavras, palavras...



Queria mergulhar as palavras (muitas das palavras) em água com lixivia, para que se diluíssem como manchas de vinho ou de sangue. Porque são isso muitas delas: manchas de vinho e de sangue. Manchas de vinho que lembram embriaguezes; manchas de sangue largado de feridas. Umas e outras afogueadas de dores, precursoras e persuasoras de outros olores. Todas danam o pano em que caem, mesmo pano-cru (no melhor pano cai a nódoa).
Queria mergulhar um monte de palavras em água com lixivia para que os micróbios que as infectam sucumbissem nessa solução.
Queria corar ao sol as palavras. Todas as palavras. Para que se tornassem brancas, puras, imaculadas, resplandecentes. De vida. Para que se tornassem transparentes e se pudesse ver a alma através delas. Porque umas são manchas de vinho; outras de sangue. Outras são pejadas de infecções por vermes de toda a espécie. Outras, ainda, são noite de breu. Umas e outras cruzam-se em nódoas emaranhadas, tão apertadas que, muito dificilmente, um raio de claridade consegue por elas furar.
E se as nódoas que embotam o pano da alma bebessem água oxigenada? Talvez respirando desse oxigénio perdessem a cor cianozada, que deixa qualquer alma manchada. Valeria a pena? Valeria sempre a pena se a alma…
Ah, queria, então, ensopar outro rol de palavras com água oxigenada, para que efervescendo espumassem e assim se depurassem. Por fim, enxaguá-las, a todas, até ficarem reluzentes, espelhadas.
É que não queria perceber um ror de palavras enquanto não fossem todas lavadas. Porque fazem mal, porque doem, moem, ou enganam e nos tramam; porque constrangem ou oprimem; porque não são inocentes, fazem muitos padecentes, uns ou outros meio dormentes; e mesmo se não nos matam, nos deixam a todos doentes.

03 maio 2011

15 Mandamentos para bem conviver com os inimigos




1. Se queres bem conviver com o teu inimigo, ignora-o. Não alimentes a sua fome de acicatar a inimizade.

2. Fecha os olhos às suas provocações; não queiras ver o mal que te quer fazer.

3. Se te acercar um temporal vindo dos lados do teu inimigo, afasta-te e observa-o de longe até que perca a intensidade; um temporal tem sempre um lado fascinante, espectacular, quando no auge, mas terá um fim, tal como teve um princípio.

4. Passa ao lado do seu mar se ele estiver muito bravo, não te vá ele afogar.

5. Aprende a nadar, para o caso de alguma das suas ondas te abalroar.

6. Rema contra a maré, com força, sem desanimar, se preciso for.

7. Contorna, ao largo, o seu barco, antes que te pegue e te faça naufragar.

8. Se não o podes vencer, junta-te a ele. Come com ele à mesa – reparte a refeição, dá-lhe do teu pão; embebeda-o com o teu vinho, pode ser que ele caia como um patinho.

9. Finge que vais na sua cantiga, mas com esperteza, sem te deixares cair na sua lábia.

10. Dá-lhe palmadinhas nas costas – um elogio engana-lhe o frio e aquece-lhe o ego.

11. Sorri para ele sem que perceba que te estás a rir dele.

12. Levanta-o quando cai ao chão; dá-lhe a mão mesmo que te apeteça dar-lhe um chuto com o pé. Assim é que é para te sentires maior.

13. E se cair no hospital vai visitá-lo; melhor ainda: visita-o na cadeia.

14. E se ele tiver a barriga tão cheia que o ódio esteja sempre a transbordar, veste-te de uma couraça de ferro, ou de aço – uma capa (quem tem capa sempre escapa).

15. Uma última solução: é sempre melhor não o ter ao pé da porta, muda de lugar (longe da vista, longe do coração).

(M. Fa. R. - 07.12.2010)

18 abril 2011

Como Escrever Ternura?




Quero escrever ternura, sempre ternura. Em suaves afagos de algodão. Na meiguice de um olhar límpido ou turvado de sal. No sorriso alegre, ou naquele que transparece de um nó na garganta que sobe do coração. Na manhã de orvalho, na tarde amena e calma, ou na noite ventosa e sem luar. Na paz e tranquilidade do lar, ou nas ruas de amargura. Na fofura de um sapatinho de criança, ou na boina encardida de um velhinho.

A ternura é um anjinho que te vela o sono; é o teu abandono em braços protectores; são os cobertores que te aconchegam no frio; é o rio de água doce que te escorre no corpo. É um doce, às vezes amargo. É um trago de frescura, de candura. Ternura é essa vontade de mimar… de se derreter em bolas de sabão… é escrever amor, e muitas vezes dor, no íntimo do coração.

O que é a ternura e o que é que se faz com ela?

( Um Desafio da Fábrica de Letras )


02 abril 2011

Era Uma Vez Um Espelho



Era uma vez um espelho. Um espelho centenário (e um mundo de magia); por detrás, um ar de miragens reclusas.

A casa, escondida nos quase escombros duma aldeola semi-desabitada de Trás-os-Montes, como que ressuscita espectros em cada canto. Dois homens (pouco mais que rapazolas) tropeçam da penumbra interior, procurando descobrir, pela primeira vez, algo mais do que o que a fraca claridade da porta, que deixaram aberta, lhes permite vislumbrar. Uma réstia de sol sente-se aprisionada na fresta da portada da janela e parece teimar em querer escancará-la; incide no espelho encostado e este devolve, ao soalho, um reflexo afogueado.

Nas cercanias, por aqueles montes e vales além, as lendas têm o condão de amedrontar os incautos viajantes que as ouvem desfolhar. E estes dois, um levado pelo outro, herdeiro afortunado, apertam-se, cada qual, num receio assombrado. O vento assobia um ritmo agreste no telhado abaulado, ao mesmo tempo que as ramadas de um velho cedro batem compassadamente na parede despida, zombando dentro um eco descontente. Um morcego volteia um bater de asas aterrador fazendo soltar dois gritos aflitos de pavor. E a réstia continua lá, num chamado insistente à aproximação. A portada range, então, às mãos ávidas de luz e põe a descoberto o romântico espelho, solto do toucador, sem uma beliscadura, resistente ao século, onde o sol agora se encandeia numa baforada multicolor.
Tudo o que é centenário é merecedor de respeito. Por aquilo que já passou, por aquilo que já viveu. Pela sabedoria que adquiriu. E ainda mais quando não deixou que a vida lhe fizesse mossa. Este espelho não envelheceu. Alguém o defendeu das agressões para que retivesse as emoções e até, quem sabe, as frustrações dos olhares que nele fulgiram. Sim, novo permaneceu. Estranho…
Estranho: um espelho centenário sem, sequer, um arranhão, que destoa de uma boa parte do recheio da ampla divisão – a casa de fora – daquela casa abandonada numa imensidão. 
E o espelho reflecte nitidamente, com fidelidade, a imagem do rapaz que dele se abeira e lhe pega. Rapaz e imagem observam-se. Do fundo sai a mesma cara, da mesma forma, do mesmo tamanho; o mesmo corpo. Estranho: nada de estranho. Mil imagens escondidas deveriam, talvez, resgatar-se agora do espelho para fora. Espera: uma outra cara, de outro rapaz, aparece logo ali a mirá-lo. E, num pulo de susto a desequilibrá-lo... Era uma vez um espelho!


(M.Fa.R. - 28.12.2010)





13 março 2011

A Imagem



Para aqueles que a rodeiam ela é, manifestamente, a personificação da perfeição. Ela é que é. Ela é que sabe. Os homens quase lhe beijam o chão que pisa, mendigando-lhe um rasgo do seu olhar; as mulheres vêem nela o ídolo a imitar.
No entanto, aos trinta e cinco anos, o mundo soa-lhe a uma porta semiaberta. Pela fresta, do lado de fora, a multidão a aplaudi-la; do lado de dentro um turbilhão de insegurança a tolhê-la: nunca saberia se todo aquele apreço seria sincero ou fingido.
Logo de manhã, qual madrasta da Branca de Neve, depõe no espelho o seu reflexo, para dele retirar alguma da confiança que a sustente debaixo do sol ou das luzes da ribalta. Mais um jeito daqui, um retoque dacolá – malditas rugas que a cada dia mais espreitam e mais máscara exigem. E são minutos incontados na produção da imagem de marca que lhe terá de assentar como luva. Depois revê mentalmente alguns dos passos que deverá dar, apostando-se em fugir de todos os outros que não puder controlar. Havia frutos de que não podia desistir, apesar de se encontrarem no cimo de uma árvore alta. O apetite levava-a a calcular tudo minuciosamente para evitar escorregadelas em tronco ensebado. Se resvalasse estatelar-se-ia ante os olhos de todos – vivia encostada a esse medo. Por isso tinha de ser precavida: a imagem tinha de ser extremamente produzida. E os passos eram contados. Contidos. Ofegantes no receio de fracassar. Quando a imagem que se quer passar é baseada em artificialidade escondida isso gera, seguramente, insegurança. Ela ainda não é ela toda, mas tem de o ser. Depressa. Agradar. Para saber a ela inteira tem que agradar sempre. Nem que lhe tenha que doer.
Agradar. Agradar o tempo inteiro é o seu único objectivo de vida. E receber sempre a ovação que daí emana. Mas morria no constante degredo de que a qualquer momento lhe espetassem o dedo: isto não é coisa da Joana.

(M. Fa. R. - 21.12.2010)

20 fevereiro 2011

A Caixa


O rapaz espiolhava a caixa de cartão com gestos nervosos. Lá dentro, um pedaço de dor aprisionado. Todos os dias a mesma coisa: a mesma inquietação, o mesmo cansaço. E a mesma indecisão a roubar-lhe o ânimo. E o medo a espetar-se-lhe como injectável de penicilina a que era alérgico. Um antídoto: precisava urgentemente de um antídoto. Sabia o veneno a espalhar-se rapidamente em espasmos irracionais, incontroláveis. E cerrou com força os olhos; contornou a torneira do pânico; tapou a caixa. Era melhor esperar amanhã. Amanhã é sempre outro dia.
Mas amanhã não lhe traria surpresas. Ou, quem sabe, trouxesse… mas não a liberdade. A liberdade era ali cúmplice da coacção. E o corpo, uma cela de prisão. E a frustração uma arma que a própria mão atira ao peito, à traição. E então, a infidelidade toma forma quando repetidamente pensada.
Os homens são todos iguais. Assim como as mulheres. Eles iguais a eles; elas iguais a elas.
Mas a fidelidade também está aí: em ser-se igual aos homens se se é homem; e igual às mulheres se se é mulher. Caramba: um homem é um homem! (E um bicho é um gato). Tomou, por fim, a decisão: não voltaria a ser fiel. Na caixa de cartão, os sapatos de Cinderela esperavam a hora de o fazer sentir a mais bela.

(M. Fa. R. - 30.11.2010)

09 fevereiro 2011

Farrapos


Imagem de Arthur Rackham

Um farrapo. Sabes aquelas alturas em que te sentes como tal? Assim pareço eu: um farrapo. Um farrapo deslocado num mundo de ostentação. Isso faz-me desviar o olhar numa tentativa de não o enxergar. Estou aqui, por engano enfiada, alinhada numa grande confusão. Este não é o meu mundo. É um mundo desigual metido num guarda-fatos que me faz sentir muito mal.
Para que me fizeram isto? Para acentuar ainda mais a diferença, a desigualdade? Ou para que tome consciência da minha verdadeira posição?
Bem vejo todo o luxo à minha volta e posso reparar na minha reles condição: um pouco de nada numa camisa de noite desgastada. Mas não (claro que não) me assusta semelhante produção bem aqui mesmo ao meu lado. Não tenho pretensões de ser igual, nem sequer parecida. Não posso. Nem quero. Só quero poder sair deste armário, onde me sinto em cativeiro, e reduzir-me ao meu canto, junto às minhas iguais, mas sem que quaisquer pensamentos derrotistas me empurrem. Apenas uma realidade se me impõe: para o bem e para o mal, isso por aí é tudo para lá de seda da mais artificial. Prefiro o meu algodão (o algodão não engana).
Espelho meu, espelho meu, não é em vão que reflectes para mim. Assim posso ver a minha imagem e melhor perceber a mensagem: não posso mudar aquilo que sou nem o estado em que estou: velha, puída, desbotada; muito usada, mas ainda não vencida.
Afinal, que tendes vós, vestidos de luxo, mais do que eu? Brilhantes? Diamantes? Fios de prata e de ouro? E vós, demónios de couro de corpos desnudados, como vos atreveis a espreitar-me de lado? Sabei todos que a vossa ama me ama, que vos despe a vós para me vestir a mim. E sou eu que lhe aqueço as horas adormecidas; sou eu que lhe redimo as noites perdidas; é a mim que se cola no cansaço da vida.
Estou velha, estou fraca, estou puída? Estou. Mas sou a dignidade no sono da pele rendida.

(M. Fa. R. - 14.12.2010, divagações de uma camisa de noite)

28 janeiro 2011

Caldinho_s



“Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.” Bem, agora já dizem que os caldos de galinha podem fazer mal também. Resta-nos a cautela.
Com a cautela podemos ganhar a lotaria. Com cautela, e sem ela, vive-se no dia-a-dia semeando e colhendo o que se semeou; ou uns semeando e outros lhes colhendo os frutos (e sem cautela lhes sai a lotaria) – alguns só sabem mesmo é (re)colher o que os outros semearam: um regalo. Regá-lo nem é com eles, só recolhê-lo. E comê-lo. E não se vê o fundo à panela, nem ao tacho. Cautela! É preciso cautela onde nada se vê.
Pois é bem certo: “em terra de cegos quem tem olho é rei”. E do nada nos aparece, tantas vezes, uma lei que, como num toque de magia, nos dizem ser remédio santo, e, no fim, verifica-se que não passa de quebranto, que amolece todo um povo e o adormece num sono de morte.
Oh, triste sorte a de quem assim se deixa adormecer. A dormir não se pode semear nem colher. E a colher que se leva à boca deixa, de um momento para o outro, de se ir mergulhar no prato, agora vazio de sopa, e só cheio de promessas que não enchem a barriga. E eu que o diga: se não quiserem ir parar ao fundo do cabouco, aquele caldo de galinha, que dantes era cura e agora é só gordura, terá de voltar a ser remédio e emplastro e urdidura. Mas, enfim, “de médico e de louco todos temos um pouco”.


(M. Fa. R. - 22.11.2010)

11 janeiro 2011

Arte(s)


Tela René Bertholo 3

Não é um jogo. Nem de futebol, nem de qualquer outra modalidade desportiva. Mas há um jogador profissional de futebol e um professor de educação física metidos nesta história. Cheiro-os ao longe. É que entrar num museu não é entrar num estádio de futebol ou num ginásio; nem mergulhar numa piscina olímpica. É um mergulho, mas na arte, na história, no passado; é chamar o passado ao presente e levá-lo ao futuro. Posso assemelhar a entrada num museu à entrada numa biblioteca. Por isso, um escritor famoso, como eu, também procura raízes num museu. Já a um profissional do desporto será o desporto que o lá levará; ou a curiosidade ou, quem sabe, para acalmar alguma ansiedade.
Desta vez não podia ter sido em pior altura. Foi completamente danificado um quadro dos mais valiosos do museu. E não sei como aconteceu. Só ouvi um grande estardalhaço e, a seguir, vejo aqueles dois ali especados com cara de assustados, depois do enorme estrondo de vidro a partir.
E isto é uma coisa de que ninguém se pode rir. Como é que este aparato foi suceder? Aproximo-me a tempo de ouvir um deles dizer:
– Isto parece uma cena para os apanhados.
Ainda estou a tentar perceber, quando aparece o vigilante e nos aponta, aos três, como culpados. Digo que eu não, que nem sequer estava ali ao pé. Mas ao que ele responde:
– Se nenhum de vós assumir a culpa têm de ser os três identificados.
– Foi apenas e só o quadro que se soltou da parede. Caiu sozinho. – Encolhe-se o professor.
– Caiu sozinho? Coitadinho! Quem pensa que está a tentar enganar? Têm de vir todos à gerência do museu prestar declarações. – Responde o outro já mal-humorado.
Com aquele tom de voz não pode haver recusas nem excepções. E a destruição de um quadro valioso daqueles não permite contemplações.
Fiquei deveras preocupado: achei que ainda ia pagar pelo que não fiz. Mas antes de ser apurada qualquer responsabilidade, empertiga-se o jogador e diz:
– Eu pago o prejuízo.
Ora aí está alguém com pouco juízo. Mas com dinheiro, benza-nos Deus. Não há um culpado. Há um herói. O que também é arte. Não sei se é isso que me dói, ou se entender que ser famoso mas não ter dinheiro é ser do mundo dos fracos.
Mas não há que desanimar: agora é hora de também ter arte para apanhar os cacos.

(M. Fa. R. - 02.11.2010)

Texto também publicado em Escrita Criativa - Campeonato Nacional
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