09 fevereiro 2011

Farrapos


Imagem de Arthur Rackham

Um farrapo. Sabes aquelas alturas em que te sentes como tal? Assim pareço eu: um farrapo. Um farrapo deslocado num mundo de ostentação. Isso faz-me desviar o olhar numa tentativa de não o enxergar. Estou aqui, por engano enfiada, alinhada numa grande confusão. Este não é o meu mundo. É um mundo desigual metido num guarda-fatos que me faz sentir muito mal.
Para que me fizeram isto? Para acentuar ainda mais a diferença, a desigualdade? Ou para que tome consciência da minha verdadeira posição?
Bem vejo todo o luxo à minha volta e posso reparar na minha reles condição: um pouco de nada numa camisa de noite desgastada. Mas não (claro que não) me assusta semelhante produção bem aqui mesmo ao meu lado. Não tenho pretensões de ser igual, nem sequer parecida. Não posso. Nem quero. Só quero poder sair deste armário, onde me sinto em cativeiro, e reduzir-me ao meu canto, junto às minhas iguais, mas sem que quaisquer pensamentos derrotistas me empurrem. Apenas uma realidade se me impõe: para o bem e para o mal, isso por aí é tudo para lá de seda da mais artificial. Prefiro o meu algodão (o algodão não engana).
Espelho meu, espelho meu, não é em vão que reflectes para mim. Assim posso ver a minha imagem e melhor perceber a mensagem: não posso mudar aquilo que sou nem o estado em que estou: velha, puída, desbotada; muito usada, mas ainda não vencida.
Afinal, que tendes vós, vestidos de luxo, mais do que eu? Brilhantes? Diamantes? Fios de prata e de ouro? E vós, demónios de couro de corpos desnudados, como vos atreveis a espreitar-me de lado? Sabei todos que a vossa ama me ama, que vos despe a vós para me vestir a mim. E sou eu que lhe aqueço as horas adormecidas; sou eu que lhe redimo as noites perdidas; é a mim que se cola no cansaço da vida.
Estou velha, estou fraca, estou puída? Estou. Mas sou a dignidade no sono da pele rendida.

(M. Fa. R. - 14.12.2010, divagações de uma camisa de noite)

16 comentários:

AC disse...

"Estou velha, estou fraca, estou puída? Estou. Mas sou a dignidade no sono da pele rendida."
O seu magnífico texto fez-me lembrar Miguel Torga...

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

Beijo :)

mfc disse...

Que grito fantástico, que força, que congruência!
Estamos realisticamente vivos...
Um beijo enorme.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

um texto fabuloso.
em tempos escrevi algo assim também.
parabéns e um

beij

Ailime disse...

Amiga Fá,
Fabuloso este seu texto.
Que posso acrescentar?
Que continue oferecendo-nos momentos elevados como este.
Como termina "a dignidade acima de tudo".
Beijinhos da
Ailime

helia disse...

Um belíssimo texto ! Foi um prazer lê-lo.

Mar Arável disse...

Com este belo texto

fiquei convicto

a autora resiste e faz resistir
é uma jovem incomensurável

Bj

Lilá(s) disse...

Mas que maravilha! sempre a presentear-nos com belos textos!
Bjs

Utilia Ferrão disse...

Sem palavras,
apenas... a dignidade sempre.
Essa em algodão, seda, ou chita.
É e será sempre a primeira roupa a vestir.
Beijinhos da Utilia

Graça Pires disse...

Um texto triste mas muito belo. Gostei imenso.
Beijos.

O Árabe disse...

Gostei muito! Eu também prefiro o meu algodão. Brilhante e diamantes... quantas vezes magoam! :) Boa semana, belo texto.

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa disse...

Que texto bonito! Quanta sensibilidade!

Nilson Barcelli disse...

A dignidade deve ser a última coisa a morrer em nós.
Belo texto, gostei imenso.
Querida amiga, bom resto de Domingo e boa semana.
Beijos.

MARILENE disse...

Fá, um texto belíssimo! O que não tem prazo de validade é o caráter. Amei! Bjs.

A.S. disse...

Orgulha-te de ti, daquilo que és! Dignidade, confiança, verdade!
A falsidade com que tantas vezes nos cruzamos, tem a tristeza nos olhos, sem brilho e sem horizontes!

Abraço!

pensandoemfamilia disse...

Escrevi um poema que fala deste espelho que não se pode fugi,r mas o que temos é a dignidade de continuar a seguir com dignidade, fazendo o nosso melhor. Ótimo texto, bem expressivo e com muitas relexões. Bjs

Ana Freire disse...

Um belo texto, que nos faz reflectir! No fundo estamos todas condenadas, a tornarmo-nos camisas de noite... o que importa, é como nos vemos: um modelito de alta costura... de modelo único... e em algodão que não se engana... sobretudo sobre a sua própria origem... e o que conta... é cada vez sabermos estar mais confortáveis no nosso próprio tecido... de amor próprio!
Um beijinho grande! Bom fim de semana!
Ana

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