23 abril 2025

Farrapos


Imagem de Arthur Rackham

Um farrapo. Sabes aquelas alturas em que te sentes como tal? Assim pareço eu: um farrapo. Um farrapo deslocado num mundo de ostentação. Isso faz-me desviar o olhar numa tentativa de não o enxergar. Estou aqui, por engano enfiada, alinhada numa grande confusão. Este não é o meu mundo. É um mundo desigual metido num guarda-fatos que me faz sentir muito mal.
Para que me fizeram isto? Para acentuar ainda mais a diferença, a desigualdade? Ou para que tome consciência da minha verdadeira posição?
Bem vejo todo o luxo à minha volta e posso reparar na minha reles condição: um pouco de nada numa camisa de noite desgastada. Mas não (claro que não) me assusta semelhante produção bem aqui mesmo ao meu lado. Não tenho pretensões de ser igual, nem sequer parecida. Não posso. Nem quero. Só quero poder sair deste armário, onde me sinto em cativeiro, e reduzir-me ao meu canto, junto às minhas iguais, mas sem que quaisquer pensamentos derrotistas me empurrem. Apenas uma realidade se me impõe: para o bem e para o mal, isso por aí é tudo para lá de seda da mais artificial. Prefiro o meu algodão (o algodão não engana).
Espelho meu, espelho meu, não é em vão que reflectes para mim. Assim posso ver a minha imagem e melhor perceber a mensagem: não posso mudar aquilo que sou nem o estado em que estou: velha, puída, desbotada; muito usada, mas ainda não vencida.
Afinal, que tendes vós, vestidos de luxo, mais do que eu? Brilhantes? Diamantes? Fios de prata e de ouro? E vós, demónios de couro de corpos desnudados, como vos atreveis a espreitar-me de lado? Sabei todos que a vossa ama me ama, que vos despe a vós para me vestir a mim. E sou eu que lhe aqueço as horas adormecidas; sou eu que lhe redimo as noites perdidas; é a mim que se cola no cansaço da vida.
Estou velha, estou fraca, estou puída? Estou. Mas sou a dignidade no sono da pele rendida.

(M. Fa. R. - 14.12.2010, divagações de uma camisa de noite)

22 abril 2025

(S)Em Dor

Procurei e encontrei a cura para a dor. E cheguei até à cura pelo coração: o coração não dói. Está provado cientificamente que o coração não dói. Sente dor mas não dói. O que dói é o que o envolve. Por isso a dor é nervosa. E psicológica: passa pelo pensamento. A dor é nervoso-psicológica: os nervos levam-na ao cérebro – ao pensamento. Pensar na dor faz doer. Há, por isso, dores do cérebro, não do coração – o coração não pensa. Não pensa: não dói. Só sente dor, mas não dói. Dói o que pensa. E o que pensa é o cérebro. É, então, o cérebro que dói. Ora, se as dores são do cérebro, e se se procura a cura para a dor, essa cura passa pelo cérebro. Nada mais fácil de curar: tira-se a dor do cérebro! Como? Tira-se o cérebro. Sem coração não se vive, que é o órgão vital do corpo. Mas pode bem viver-se sem cérebro(!). E, assim, jamais haverá dor. Só com o coração no comando poder-se-á viver. E como o coração não dói, nada mais em nós poderá doer. 
 (M. Fa. R. – 2010-07-09)

21 abril 2025

Abril



Em Abril ainda há frio e chuva, mas tudo é vida nova que se derrama. Mostra suaves manhãs em que apetece dormir, mas que são muito preciosas para caminhar.
Quando as nuvens choram e derramam as suas lágrimas sobre a terra, os campos reverdecem e parecem cantar. Cheira a verde. Começa uma liberdade a florir. Sorriem os lírios; canta o cuco. Apetecem as amêndoas. A Páscoa completa a poesia.
M. Fa. R. (17.03.2009)

20 abril 2025

Aleluia!



E eis que a vida inteira
Refloresce
O finito deu lugar à eternidade 
Perante o desconcerto do mundo


09 abril 2025

(A)corda



“A corda rebenta sempre pelo lado mais fraco”. Um lado que vai enfraquecendo cada vez mais. Dando de si. Em dor.
De um novelo me tiraram e nós me seguram as pontas. Longe vai o tempo em que, nova e lustrosa, era bem resistente aos safanões das mãos que me faziam dançar.
Com o tempo e o uso, a fragilidade apodera-se de qualquer corpo e o meu não é excepção. Vão-se-me desfiando os fios, no desfiar dos dias, ao toque das Avé-Marias. Esticada à força de puxões e fricções, estou prestes a rebentar. Ai. Geme-me a alma quando a dança, cada vez mais pífia, me acusa do desgaste ao sacudir-me no chamamento para a missa (“a messe é grande e os trabalhadores são poucos”). As vibrações percorrem-me o corpo despido, dorido de tanto badalar. E escorre por mim o medo de soçobrar às mãos que me cofiam. Então, se houver um toque a rebate, depressa ficarei nas mãos de alguém.
Os sopros de uma coruja, que vislumbro por uma janela meio iluminada, minha companheira nesta noite assombrada, vêm gelar-me de frio medonho os ossos cansados; à minha volta move-se um vazio abismal; e eu, com os dedos descarnados de tanto me segurar, espero pelos compassos da aurora que me venham libertar.
Mas, se então ainda não partir, estou certa de que irão continuar a servir-se de mim, sem pensarem em me substituir. Custará assim tanto reparar que esta pobre corda, presa ao badalo do sino do campanário, está cada vez mais velha e gasta, e quase quase a rebentar?
E é então que me sinto abanar: “(a)corda”!

(M.Fa. R. - 09.11.2010)

06 abril 2025

Nabos da Púcara




 – Então, miúda, conta lá!

 – Contar o quê?

 – Não te faças de sonsa, pensas que eu não sei?

 – Sabes?... Sabes o quê?

 – Ora, queres lá ver agora… hmm… nem penses que te escapas sem me contar…

 – Mas não há nada para contar!

 – Ai há, há!… olha aí tu toda corada…

Maria toca instintivamente com a mão na cara, sentindo-a quente:

 – Isto é porque já estou a ficar enervada com essa tua insistência…

Mas Lili não desarma:

 – É, é!… vá lá, desembucha! Eu sei que se passa alguma coisa…

 – Mas não se passa nada!... não sejas chata!

 – Ok, ok… não queres contar, não contes… mas olha que eu podia ajudar-te…

 – Bolas!... isto mais parece uma cena para os apanhados!

05 abril 2025

Palavras, palavras, palavras...



Queria mergulhar as palavras (muitas das palavras) em água com lixivia, para que se diluíssem como manchas de vinho ou de sangue. Porque são isso muitas delas: manchas de vinho e de sangue. Manchas de vinho que lembram embriaguezes; manchas de sangue largado de feridas. Umas e outras afogueadas de dores, precursoras e persuasoras de outros olores. Todas danam o pano em que caem, mesmo pano-cru (no melhor pano cai a nódoa).
Queria mergulhar um monte de palavras em água com lixivia para que os micróbios que as infectam sucumbissem nessa solução.
Queria corar ao sol as palavras. Todas as palavras. Para que se tornassem brancas, puras, imaculadas, resplandecentes. De vida. Para que se tornassem transparentes e se pudesse ver a alma através delas. Porque umas são manchas de vinho; outras de sangue. Outras são pejadas de infecções por vermes de toda a espécie. Outras, ainda, são noite de breu. Umas e outras cruzam-se em nódoas emaranhadas, tão apertadas que, muito dificilmente, um raio de claridade consegue por elas furar.
E se as nódoas que embotam o pano da alma bebessem água oxigenada? Talvez respirando desse oxigénio perdessem a cor cianozada, que deixa qualquer alma manchada. Valeria a pena? Valeria sempre a pena se a alma…
Ah, queria, então, ensopar outro rol de palavras com água oxigenada, para que efervescendo espumassem e assim se depurassem. Por fim, enxaguá-las, a todas, até ficarem reluzentes, espelhadas.
É que não queria perceber um ror de palavras enquanto não fossem todas lavadas. Porque fazem mal, porque doem, moem, ou enganam e nos tramam; porque constrangem ou oprimem; porque não são inocentes, fazem muitos padecentes, uns ou outros meio dormentes; e mesmo se não nos matam, nos deixam a todos doentes.

01 abril 2025

Quando as ondas do mar se transformam em gaivotas



Foto: Eider Oliveira


Ao cair da tarde
As ondas do mar transformam-se em gaivotas

A poesia veste o areal
E a praia converte-se
Obedecem os barcos ao chamamento do mar
E as redes mudam-se em peixes a pular

Movem-se em corrupio para ver
Pessoas sôfregas em alvoroço
E uns compram a dez outros a cem
Que esta poesia também é para comer

Entretanto ressoa o marulhar turbulento
E no lastro doirado estendidos
Plebeus panos sorridentes
De voluptuosos reflexos coloridos

Debaixo do azul reluzente
No oiro espelhado da areia
Constroem em risos castelos crianças
Vigiadas pelos olhares das sereias

E ora ao banho na hora
Da festa ondulante magia
No sal que jorra e sacia
Corpos e almas afora

Tinge-se em momentos de branco o céu
Quando as nuvens se enxameiam
E novamente de luz
Assim que elas se retiram

E é ao cair da tarde
Que as ondas do mar se transformam em gaivotas
Ao transfigurar-se o sol em bruma
E eu rendo-me à sonolência
Quando o mesmo bando
Se desfigura em espuma



22 janeiro 2025

Mau(s) tempo(s), má fortuna, erros (nossos)…



Tantos puxões, abanões, para um lado e outro, trás! e frente, e verso, e vice-versa – perversos! –, rola e pula, baralha e volta a dar; uns a surtirem efeito, outros a nem por isso dar... 
É chuva, é vento, mau tempo, má fortuna, tormento. Erros nossos, ou maldade alheia. Tempestades no corpo e na alma, a todo o tempo, o tempo todo.  
Vidas assim, toda a vida, a vida toda – vivida, chovida, revirada, emaranhada, marada, transviada, desafortunada. 
Vidas desviradas, partidas, sofridas, desairadas: tal chapéu! acossado e degredado. 
Vidas enredadas como silvados ou trepadeiras embrulhados, que se fundem enrodilhados; e a cada puxão há troços que se partem e espinhos que se espetam e ferem a carne e a alma.
Estranhas formas que se nos desenham nos olhos e nas mãos... e na imaginação; que nos fazem, umas vezes, abanar, tropeçar, cair; e outras nos ferem até a levantar do chão. 
E restam, tantas vezes, a par com a (des)ilusão, riscos de sangue, alma rasgada; que o menor toque a frio, de qual pedra afiada ou de gelo, gera sobressalto e defesa, fuga, mais puxões e sangue; até que, de um jeito ou de outro, se aventure quem(?) a quebrar o círculo vicioso. 
Maus ventos no canal! Encostos ao silveiral.
Quem ousará semear o sol que nos poupe ao(s) mau(s) tempo(s)? 
Quem nos removerá os erros dos caminhos, para lá das passadas que ainda não foram dadas?...


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