
Imagem de Arthur Rackham
Um farrapo. Sabes aquelas alturas em que te sentes como tal? Assim pareço eu: um farrapo. Um farrapo deslocado num mundo de ostentação. Isso faz-me desviar o olhar numa tentativa de não o enxergar. Estou aqui, por engano enfiada, alinhada numa grande confusão. Este não é o meu mundo. É um mundo desigual metido num guarda-fatos que me faz sentir muito mal.
Para que me fizeram isto? Para acentuar ainda mais a diferença, a desigualdade? Ou para que tome consciência da minha verdadeira posição?
Bem vejo todo o luxo à minha volta e posso reparar na minha reles condição: um pouco de nada numa camisa de noite desgastada. Mas não (claro que não) me assusta semelhante produção bem aqui mesmo ao meu lado. Não tenho pretensões de ser igual, nem sequer parecida. Não posso. Nem quero. Só quero poder sair deste armário, onde me sinto em cativeiro, e reduzir-me ao meu canto, junto às minhas iguais, mas sem que quaisquer pensamentos derrotistas me empurrem. Apenas uma realidade se me impõe: para o bem e para o mal, isso por aí é tudo para lá de seda da mais artificial. Prefiro o meu algodão (o algodão não engana).
Espelho meu, espelho meu, não é em vão que reflectes para mim. Assim posso ver a minha imagem e melhor perceber a mensagem: não posso mudar aquilo que sou nem o estado em que estou: velha, puída, desbotada; muito usada, mas ainda não vencida.
Afinal, que tendes vós, vestidos de luxo, mais do que eu? Brilhantes? Diamantes? Fios de prata e de ouro? E vós, demónios de couro de corpos desnudados, como vos atreveis a espreitar-me de lado? Sabei todos que a vossa ama me ama, que vos despe a vós para me vestir a mim. E sou eu que lhe aqueço as horas adormecidas; sou eu que lhe redimo as noites perdidas; é a mim que se cola no cansaço da vida.
Estou velha, estou fraca, estou puída? Estou. Mas sou a dignidade no sono da pele rendida.
(M. Fa. R. - 14.12.2010, divagações de uma camisa de noite)