06 maio 2023

Sem Dedicatórias


Pablo Picasso, Visage De La Paix (Serigraph)

(...) A alguém que corta as asas a uma pequena ave, que ensaia os primeiros voos, é-se desobrigado de dedicatórias.

Quero acreditar que não o terão feito por mal. O que me custa a aceitar é que sempre se vangloriassem desse facto, como se o tivessem feito com a melhor das intenções. Mas não são as boas e as más intenções que contam para as estatísticas, só os actos concretos. E há actos concretos que resultam de intenções inconscientes, saídas de atitudes assumidas, de religiões ou filosofias de vida. O corte das minhas asas foi uma mutilação genital. Um acto, não de pura maldade, mas de maldade pura. Uma maldade como se faz às galinhas, quando se lhes cortam as penas das asas, para que elas não voem por cima do muro, para as manter sempre no lugar a que pertencem – a capoeira; para que não se aventurem por outros lugares e se percam neles; para que não cruzem outros mundos e se afastem dos donos. Como pode voar uma ave de asas cortadas?!

No entanto eu voei. Unicamente por mérito próprio, voei. Colei as asas e voei (mesmo podendo talvez haver quem não tenha visto isso com bons olhos). Tarde, é certo, mas voei… voo. Apesar de todas as contrariedades: asas que tive de saber colar; ventos que tive de amainar; tempestades que teimaram em me amedrontar; calor escaldante que tive de arrefecer; frio cortante que tive de ignorar; florestas que tive de desbravar; desertos que tive de regar; uma infinidade de horas e dias e anos e sonos que tive de me roubar. Voei. Um voo incerto, inseguro, mas que tem adquirido cada vez mais consistência. Um voo que foi uma das coisas mais belas de que pude desfrutar.

Mais do que a meta que o voo pretenda alcançar, é o caminho percorrido, o céu explorado, o melhor da jornada.

A minha alma sente gratidão por me distinguirem no voo, por entre tantas outras aves que brilham ao sol; a mim, uma pequena ave de asas coladas.

(M. Fa. R. - 04.01.2010)

05 maio 2023

De fugir

Um chão que nos foge dos pés 

Uma paisagem que nos treme nos olhos

Um mundo que não nos cabe nas mãos

 

Uma dor que nos chega

Uma palavra que nos parte

Um sorriso que nos morre

 

Uma voz abafada na garganta

Um olhar desfocado de cor

Um sentimento preso na pele

 

Uma ausência forçada

Uma estrofe falida

Uma ferida imunda

 

Uma boca faminta

Uma janela fechada

Uma tela deserta

 

Um abandono que mata

Uma flor de vida pisada

Um desrespeito que é faca

 

Um vento de nortada

Uma bomba perdida

Um grito de rajada

 

Um rol infinito

Um mundo enlouquecido

Um desamor a céu aberto

 

Escapar é imperativo

Desviar-se, fugir ao perigo que nos espreita o canto

É hora de calcorrear a vida mostrando que ela também é amar


(Publicado originalmente a 09/08/2011 no meu blogue Nuvens de Orvalho (apagado), para Fábrica de Letras e Palavras, poema 33)


03 maio 2023

A Pedinchice


Uma caixa de fósforos e meio litro de petróleo; um quilo de prego de meio solho e de ripa, misturados; um pacote de cloreto e um quarto de quilo de sabão azul; um pacote de massa de meada; meio quilo de açúcar amarelo. Com conta, peso e medida. Os rebuçados quase todos. Sem conta nem medida.
Foi assim uma tarde inteira atrás do balcão da loja. E um enorme ralho furioso do pai.
Aos poucos, o pai foi-lhe confiando a loja. Desde pequenina foi aprendendo e ajudando e, depois, quando o pai a sentiu preparada, para além de aviar os fregueses, passou a anotar as faltas de mercadoria e a fazer as encomendas aos vendedores quando o pai não estava; conferia, também, a mercadoria que os viajantes iam entregar e arrumava-a nas prateleiras; e, ainda, tinha ao seu encargo o registo das facturas das compras no livro.
Naquela tarde, o pai teve que sair e ela ficou sozinha a tarde toda, como noutras vezes. Até se desenrascou bem… só com os rebuçados é que correu mal.
– O frasco dos rebuçados está quase vazio porquê?
– Vendi-os…
– E onde é que está o dinheiro? – perguntou o pai, de gaveta aberta, depois de conferir as vendas que ela tinha anotado.
Foi apanhada. E teve que dizer toda a verdade, que era só uma: tinha-os dado à Nelita, à São e à Fernanda.
A voz do pai ecoou pela loja inteira e, decerto, pela rua além. Encolheu-se com medo de que a trovoada trouxesse chuva, mas a nuvem negra passou ao lado e escapou daquela. Não escaparia de uma próxima, deixou o pai prometido. Mas “não acontecerá mais”, também ela deixou prometido.
Daquela vez, as amigas conseguiram levá-la à certa quando lá foram chamá-la para jogar à macaca com elas. Como lhes disse que não podia sair, encostaram-se ao balcão a dizerem que, então, tinha que lhes dar rebuçados para as compensar; e voltaram mais vezes, com falinhas mansas, a pedir sempre mais.
Mas não voltaria a cair noutra, porque viu como foi palerma ao deixar-se levar na pedinchice delas e no que elas lhe diziam. Afinal, se elas gostassem dela, como ela gostava delas e, ainda mais, sendo duas mais velhas do que ela, não teriam ousado abusar da sua bondade e fraqueza, agindo daquela maneira, só pensando nelas e nada na amiga.

01 maio 2023

Maio



A deusa de Maio endereça o seu sopro às plantas e elas crescem; os rebentinhos aparecem em cachos de folhas novas; brotam as espigas e enchem-se de pão para o semeador. Alegra-se o coração ao sorriso do Criador. É o mês de Maria. O mês do coração. Mês dos amores. Há outras cores, outras flores, muitas flores… e abelhas.
Os dias começam a ser maiores e apetece a merenda. E o céu é todo azul.

M. Fa. R. (17.03.2009)

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