Provocas arrepios na pele. Toda tu és arrepios. Já te disseram que és boa como o milho?
Quando esta história começou nem te passava pela cabeça o rumo que ela iria tomar. Nem a mim tão-pouco. Acabámos a descer o rio em canoa. Para baixo era sempre a descer (dizem que para baixo é que é Lisboa). Mas havia rápidos que eram rápidos demais. Ai, a água que metemos! Numa curva apertada desequilibrámo-nos e virámos a canoa ao contrário. Quase te afogaste (só depois disso é que começaste a aprender a nadar) e tive de te salvar. Puxei-te para terra e fiz-te respiração boca a boca. (Que boca!). Não era preciso, disseste depois, mas gostaste, que eu bem percebi quando as nossas línguas aguaram. Foi, então, a minha vez de quase me afogar… nesse rio que escorria em ti. Mas salvei-me a tempo nas margens das tuas mãos que me seguraram.
Endireitámos, depois, a canoa e alinhámos rio abaixo, mas continuámos a meter água. A canoa avançava umas vezes aos solavancos, outras deslizando como em ringue de patinagem, e ainda outras muito à força de remar como se fosse contra a maré. E não chegámos à meta. Virámos para um afluente magro e barrento e saímos a poucos metros, porque se tornava impraticável a navegação, ficando enlameados e exaustos. Foi quase o salve-se quem puder, com um a escorregar daqui, outro a puxar dacolá… tentando trepar a margem. E eu já nem a mim me segurava, quanto mais a ti! Terminámos a aventura no chão, espalhados ao comprido!
Descansámos, enfim, sujos e perdidos, na terra cultivada de milheiros verdes e altos, que nos engoliam. As barbas tombavam das espigas tenras, como convite a serem desfolhadas. Dizem que o milho verde é bom para comer, e a fome até era mais do que muita, mas o cansaço venceu-me e adormeci na sombra daquele milheiral, com o sol a espreitar pelas frestas.
Acordei sozinho já o sol descaía. Ergui-me e procurei-te com os olhos, mas tinhas desaparecido. Ali perto, vi uma casa de quinta para onde me dirigi e lá me esperavas com um sorriso de orelha a orelha. Estavas melhor do que eu, lavada e reconfortada. E eu nada!
Aceitei um duche e uma velha camisola, e depois, esfomeado, não me fiz rogado ao pão de centeio e marmelada, que era o que havia – desculparam-se os donos da casa.
– Oh, oh! Delicioso!
Pois não! Burro com fome, cardos come! E o que é doce nunca amargou! (Quer dizer: nem tudo! Há doces que deixam um amargo na boca: tu.)
Pedi depois para telefonar a quem nos viesse buscar. Quando chegou a boleia, agradeci a hospitalidade e fomos. E a canoa seguiu viagem, não rio abaixo, mas camioneta acima.
Chegados ao destino, cada um foi à sua vida. E cada vida tomou o seu caminho.
E caímos num impasse: nem tu me ligavas, nem eu te esquecia. Até chegar o dia em que dei por mim, com insistência, a evocar aquele milheiral verde e em como és boa como o milho, e eu que não fui nem sou galinha!
Pois bem, mas não me importei de passar por galo e tentar! Se tu não me ligavas, liguei eu:
– Estou?… Sara?...
– André!… que saudades!
– Cocorococó!...
(M. Fa. R. - 16.07.2010)