10 abril 2012

A Pedinchice


Uma caixa de fósforos e meio litro de petróleo; um quilo de prego de meio solho e de ripa, misturados; um pacote de cloreto e um quarto de quilo de sabão azul; um pacote de massa de meada; meio quilo de açúcar amarelo. Com conta, peso e medida. Os rebuçados quase todos. Sem conta nem medida.
Foi assim uma tarde inteira atrás do balcão da loja. E um enorme ralho furioso do pai.
Aos poucos, o pai foi-lhe confiando a loja. Desde pequenina foi aprendendo e ajudando e, depois, quando o pai a sentiu preparada, para além de aviar os fregueses, passou a anotar as faltas de mercadoria e a fazer as encomendas aos vendedores quando o pai não estava; conferia, também, a mercadoria que os viajantes iam entregar e arrumava-a nas prateleiras; e, ainda, tinha ao seu encargo o registo das facturas das compras no livro.
Naquela tarde, o pai teve que sair e ela ficou sozinha a tarde toda, como noutras vezes. Até se desenrascou bem… só com os rebuçados é que correu mal.
– O frasco dos rebuçados está quase vazio porquê?
– Vendi-os…
– E onde é que está o dinheiro? – perguntou o pai, de gaveta aberta, depois de conferir as vendas que ela tinha anotado.
Foi apanhada. E teve que dizer toda a verdade, que era só uma: tinha-os dado à Nelita, à São e à Fernanda.
A voz do pai ecoou pela loja inteira e, decerto, pela rua além. Encolheu-se com medo de que a trovoada trouxesse chuva, mas a nuvem negra passou ao lado e escapou daquela. Não escaparia de uma próxima, deixou o pai prometido. Mas “não acontecerá mais”, também ela deixou prometido.
Daquela vez, as amigas conseguiram levá-la à certa quando lá foram chamá-la para jogar à macaca com elas. Como lhes disse que não podia sair, encostaram-se ao balcão a dizerem que, então, tinha que lhes dar rebuçados para as compensar; e voltaram mais vezes, com falinhas mansas, a pedir sempre mais.
Mas não voltaria a cair noutra, porque viu como foi palerma ao deixar-se levar na pedinchice delas e no que elas lhe diziam. Afinal, se elas gostassem dela, como ela gostava delas e, ainda mais, sendo duas mais velhas do que ela, não teriam ousado abusar da sua bondade e fraqueza, agindo daquela maneira, só pensando nelas e nada na amiga.

17 comentários:

  1. Excelente conto, Fa.

    Postei a notícia sobre um concurso de conto infantil. Quer lá ir ver?

    Bj

    Olinda

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  2. Amigas da onça, é o que elas eram...
    Beijos, querida amiga.

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  3. Amigas sabidonas!
    Bjs

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  4. A vida vai-nos ensinando como neste micro conto irrepreensível de conteúdo!

    Beijos,

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  5. Ó amiga Fá,
    Uma delícia ler os seus contos.
    Para além de apreciar a sua escrita como tenho referido sinto-me transportada à minha infância de doces carinhos mas numa época em que as minhas amigas (?) eram como as da história:)).
    Beijinhos e muito obrigada.
    Ailime

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  6. *
    amigos 110 ou talvez mais,
    etc, etc, etc.
    ,
    poema de Camilo C. Branco
    ,
    conchinhas, ficam,
    *

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  7. Fa

    Um conto que encaixa tanto no contexto actual dos (des)afectos, sobretudo, da (des)amizade.

    Beijinho

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  8. um conto delicioso.

    (acho já tinha comentado.mas nao sei onde anda o coment.)

    um beij

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  9. São das tais amigas que a ninguém interessam....Amizade????

    Gostei deste texto

    Bom domingo

    Beijito da Gota

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  10. Por vezes acontece..... Amigos desses..... só longe.
    Bom fim de semana

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  11. Que conto lindo. Nunca conseguirei escrever assim tão fantástico .
    Abraços

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  12. Oportunistas! O mundo está cheio de gente assim! Que se aproveita da generosidade dos outros.

    Até um dia destes.

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  13. Amigas? Não, há quem goste de se aproveitar da generosidade alheia. Um ótimo conto. bjs

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  14. "Amizades" interesseiras... assim é que vamos aprendendo a distingui-las das verdadeiras... que não carecem de benefícios...
    Mais um texto adorável, que foi um gosto imenso apreciar, Fá!
    Beijinhos!
    Ana

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  15. Muito interessante este texto.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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  16. El amor y la amistad es aceptación y cariño te mando un beso

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  17. Amigas?
    Nossa, fiquei até com raiva das 'amigas',
    isso prova que seu belo conto bateu aqui, de verdade!
    E se bate na nossa sensibilidade é porque atingiu o objetivo!
    Adorei, Fá!
    Beijinho.

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«a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa – ou seja, as coisas que fazemos por obrigação, que não nos interessam, para sobreviver – e a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.»
(Edgar Morin)
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