Presença

Acabou por se levantar a custo da noite mal dormida, de cabeça pesada e de olhos colados pela manhã de sono que o dia lhe vinha roubar. A cama, que lhe custara a moldar ao corpo, bem que lhe pedia agora para esperar, mas o despertador digital, que lhe sobrara na mesinha de cabeceira, acenava que não. O tempo não se compadecia com esperas. Quão complicado de rodar a surpreendia, tantas vezes, o filme da vida! O mundo fazia-a correr, girar, muitas das vezes, sem indicar bem para onde ir. A vida dava-lhe voltas e trocava-lhas, sem contemplações pelo que ela pudesse sentir! Só um grande amor à vida era o seu companheiro das horas insubmissas, que o mundo nunca lhe tinha conseguido tirar. Com aquele amor fazia-se de forte na fraqueza que ocasionalmente a apertava. E nunca tinha deixado perder as esperanças de que dias luminosos pudessem chegar. Farta andava de calcorrear ruas, umas apinhadas de nada, outras vazias de tudo, outras com tudo e mais nada. Todas elas lhe sugeriam, pediam até, que era preciso ainda mais amar. E os sonhos sempre lhe voaram em liberdade. Eram gaivotas que não tinha deixado meter na prisão.
Por isso, não, não podia dormir quando a justiça social se faz ausente. (M.Fa.R. - 14.05.2010)

Espera... é Verão!


Encostado a uma esquina do bar, come, mais do que lambe, o corneto de baunilha com a sofreguidão da tarde quente. Com a sofreguidão de um primeiro gelado, de um primeiro dia de calor, de um primeiro dia de praia, de um primeiro dia de Verão. Senta-se no muro pequeno, à sombra, com os pés assentes no relvado, e olha em redor. Sabia-lhe bem aquela frescura, fresca e leve, suave como a brisa mansa que o beija e lhe sorri nos olhos.
Espera. Espera como quem espera por algo ou alguém. Talvez apenas espere as horas passarem. Encosta o telemóvel ao ouvido.
Na outra esquina do bar, atrás dele, ela, vinda de dentro com uma chávena de café na mão, fala ao telemóvel.
Ele usa, no dedo anular da sua mão esquerda, uma aliança reluzente.
Ela guarda o telemóvel e volta para dentro.
Ele brinca com o telemóvel nas mãos e perde os olhos ao longe. Depois levanta-se e caminha. Recolhe-se ao interior da ambulância, estacionada junto às consultas externas, ao assento do condutor, e continua à espera. 

A Chave




Quando Deus expulsou Adão e Eva do paraíso terrestre, vedou-lhes o acesso à vida sem fim. Não acontecesse comerem do fruto da árvore da vida, como comeram do da ciência do bem e do mal. E a árvore do fruto da vida eterna ficou lá. Fechada à chave e guardada por querubins.
Ora, Adão e Eva, sem terem acesso à vida ilimitada, não a poderiam transmitir à sua descendência. Por isso, a Humanidade ficou condenada.
Desde então, o segredo da vida eterna - não da vida para além da morte, mas da vida sem morte - tem sido sempre objecto de procura incessante do Homem. Mas esse segredo está fechado à chave, e esta, dada como irremediavelmente perdida; não se sabe onde estará: se com os querubins, se nas mãos de Deus… ou nas de S. Pedro, aquele que tem as chaves do Reino dos Céus. O Homem bem a tem procurado, mas sem êxito. E sem ela não há acesso ao fruto que dá vida infinita. Sem chave é morte certa!

Foi aí que dei por mim a pensar: se não há chave tem de se arranjar. Aí está! Encontrei a solução para a vida eterna. A solução está na chave.
Tanto que o Homem tem buscado uma solução para a morte: uma chave. Quer através de mezinhas caseiras, quer em cada vez mais sofisticadas práticas laboratoriais, como a clonagem, a manipulação genética: uma chave! Bem têm procurado uma chave. Mas não era uma chave que faltava, era A chave: aquela chave que abre a porta do jardim onde está a árvore da vida. Só com o fruto dessa árvore se conseguirá eliminar a morte. A chave é a única solução para abrir a porta à vida sem limite temporário.
A chave! A solução está na chave.

Por isso tem de ser feita outra chave. É a única solução: fazer outra chave que sirva naquela fechadura… que sirva naquela fechadura, daquele portão!
Lamento! Mas esta é uma triste conclusão. É que os querubins estão de guarda, armados de espadas flamejantes… como chegar lá? E quem se atreverá a desafiar Deus, ao ponto de sequer tentar fabricar outra chave?
No entanto, a chave é a única solução!
Quem se atreverá? Quem conseguiria? Quem é que se deixa dominar pela imaginação?
Será isto tudo uma utopia? Ou não passará tudo de ficção?
Se alguém acha que é mentira, eu não!... [não]???

(M. Fa. R. - 30. 03. 2009)

Vento e Luz


(Imagem: Ma Dong Min)

Um vento meio silente sussurra
Nas pequenas horas da manhã
Quando a luz começa a arder
Por detrás das montanhas

Pelos umbrais rasteja
Em leve sopro
Nos dias em que a penumbra é chaga
E a luz é espada

Quem ousará abrir cortinas?
Quero ver o vento solto nos cabelos
E a luz uma dança nos olhares

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