28 janeiro 2011

Caldinho_s



“Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.” Bem, agora já dizem que os caldos de galinha podem fazer mal também. Resta-nos a cautela.
Com a cautela podemos ganhar a lotaria. Com cautela, e sem ela, vive-se no dia-a-dia semeando e colhendo o que se semeou; ou uns semeando e outros lhes colhendo os frutos (e sem cautela lhes sai a lotaria) – alguns só sabem mesmo é (re)colher o que os outros semearam: um regalo. Regá-lo nem é com eles, só recolhê-lo. E comê-lo. E não se vê o fundo à panela, nem ao tacho. Cautela! É preciso cautela onde nada se vê.
Pois é bem certo: “em terra de cegos quem tem olho é rei”. E do nada nos aparece, tantas vezes, uma lei que, como num toque de magia, nos dizem ser remédio santo, e, no fim, verifica-se que não passa de quebranto, que amolece todo um povo e o adormece num sono de morte.
Oh, triste sorte a de quem assim se deixa adormecer. A dormir não se pode semear nem colher. E a colher que se leva à boca deixa, de um momento para o outro, de se ir mergulhar no prato, agora vazio de sopa, e só cheio de promessas que não enchem a barriga. E eu que o diga: se não quiserem ir parar ao fundo do cabouco, aquele caldo de galinha, que dantes era cura e agora é só gordura, terá de voltar a ser remédio e emplastro e urdidura. Mas, enfim, “de médico e de louco todos temos um pouco”.


(M. Fa. R. - 22.11.2010)

11 janeiro 2011

Arte(s)


Tela René Bertholo 3

Não é um jogo. Nem de futebol, nem de qualquer outra modalidade desportiva. Mas há um jogador profissional de futebol e um professor de educação física metidos nesta história. Cheiro-os ao longe. É que entrar num museu não é entrar num estádio de futebol ou num ginásio; nem mergulhar numa piscina olímpica. É um mergulho, mas na arte, na história, no passado; é chamar o passado ao presente e levá-lo ao futuro. Posso assemelhar a entrada num museu à entrada numa biblioteca. Por isso, um escritor famoso, como eu, também procura raízes num museu. Já a um profissional do desporto será o desporto que o lá levará; ou a curiosidade ou, quem sabe, para acalmar alguma ansiedade.
Desta vez não podia ter sido em pior altura. Foi completamente danificado um quadro dos mais valiosos do museu. E não sei como aconteceu. Só ouvi um grande estardalhaço e, a seguir, vejo aqueles dois ali especados com cara de assustados, depois do enorme estrondo de vidro a partir.
E isto é uma coisa de que ninguém se pode rir. Como é que este aparato foi suceder? Aproximo-me a tempo de ouvir um deles dizer:
– Isto parece uma cena para os apanhados.
Ainda estou a tentar perceber, quando aparece o vigilante e nos aponta, aos três, como culpados. Digo que eu não, que nem sequer estava ali ao pé. Mas ao que ele responde:
– Se nenhum de vós assumir a culpa têm de ser os três identificados.
– Foi apenas e só o quadro que se soltou da parede. Caiu sozinho. – Encolhe-se o professor.
– Caiu sozinho? Coitadinho! Quem pensa que está a tentar enganar? Têm de vir todos à gerência do museu prestar declarações. – Responde o outro já mal-humorado.
Com aquele tom de voz não pode haver recusas nem excepções. E a destruição de um quadro valioso daqueles não permite contemplações.
Fiquei deveras preocupado: achei que ainda ia pagar pelo que não fiz. Mas antes de ser apurada qualquer responsabilidade, empertiga-se o jogador e diz:
– Eu pago o prejuízo.
Ora aí está alguém com pouco juízo. Mas com dinheiro, benza-nos Deus. Não há um culpado. Há um herói. O que também é arte. Não sei se é isso que me dói, ou se entender que ser famoso mas não ter dinheiro é ser do mundo dos fracos.
Mas não há que desanimar: agora é hora de também ter arte para apanhar os cacos.

(M. Fa. R. - 02.11.2010)

Texto também publicado em Escrita Criativa - Campeonato Nacional
.

28 dezembro 2010

Em Jeito de Balanço

 
  Caríssimos, 
Preciso de lhes dizer o que me vai na alma. 
Por um tempo foram-me acontecendo alguns exercícios idiotas (entre outros que me percorreram). E como idiota os resolvi. A minha realidade não estava lá – nem de perto, nem de longe. Mas aproximei-me; foquei-os pelo canto do olho; inspirei fundo para lhes sentir o odor; apurei o ouvido ao som do vento que me os trazia, e que umas vezes me era brisa e outras, ventania; rocei-lhes ao de leve os lábios, a tentar que me fossem sede; tacteei-lhes as vértebras dorsais, que pai-nossos não foram, mas orações se fizeram. Deles me ficou um mundo novo. 
Quero ver tudo isso como ginástica: um levantar de pesos, ou carregá-los. 
Por vezes, descansar à sombra é mais sedutor. Não dói. Carregar pesos custa. Custa o esforço, a dor, o suor… O exercício pode ser violento e causar rupturas, estriamentos, se não houver algum aquecimento prévio. Porém: os saltos em altura e em comprimento permitiram-me alongar horizontes e estreitar mares por onde me será possível sempre navegar. 
Bem-hajam por fazerem parte da tripulação do meu barco.
  (M. Fa. R. - 23.07.2010)

18 dezembro 2010

Escrever é Voar

– Um escritor pode delirar de forma deliciosa ao escrever. Pegar nas nuvens e com elas erguer castelos, cavalos, cavaleiros, pastores, rebanhos, pradarias, florestas, flores, sinfonias; e muitas cores roubar ao arco-íris para pintar um painel; e com o mesmo pincel soletrar o calor do sol ou o orvalho, a chuva, o frio, a neve, ou o amor, o trabalho, a dor, a tristeza, a alegria; e a fome, a guerra, a paz, a vida, a morte, a fortuna ou a má sorte podem estar lado a lado na mesma paleta; e cruzarem-se mares e céus, rios e ruas, estrelas e luas, vulcões, e ventanias, ou vendavais, trovoadas, tempestades, furacões e tudo o que se quiser e ousar fazer brotar dos lábios e dos corações. Acreditas?
Escutava-o enlevado. Quando se tem 15 e 16 anos pode-se ter o mundo aos pés sem se o saber. Pode-se, até, ter o mundo na mão e fazê-lo girar, ou então deixá-lo cair por senti-lo pesado.
– Isso é voar. E fazer sonhar. Eu também sonho um dia ser escritor. Escrever isso e muito mais. Escrever um livro, como tu. Imprimir no papel palavras que me nasçam na mão, mas não sei se isso é querer agarrar com os dedos a lua toda, cheia, quando apenas se vai sendo tocado por uns raios do seu luar.
– Quando se sonha tudo é possível: a lua brilha-te na mão; as estrelas sorriem-te nos olhos; o arco-íris solta-se-te da boca; o sol é o teu coração; e todo tu és rios e mares, fogo e água pura, areia que enche o deserto, camada de ozono que envolve a atmosfera; és a própria atmosfera, o ar que tu próprio respiras. Acredita: “O sonho comanda a vida”. E tu podes. Tu és. Aceita. E avança resoluto, sem nenhum receio de contrariares ventos, correntes e marés. Firma os pés na terra, deixa que te escorra no peito o suor dessa guerra e, nas mãos, terás ganho essa luta.

(M. Fa. R. 16.11.2010)

09 dezembro 2010

(A)corda



“A corda rebenta sempre pelo lado mais fraco”. Um lado que vai enfraquecendo cada vez mais. Dando de si. Em dor.
De um novelo me tiraram e nós me seguram as pontas. Longe vai o tempo em que, nova e lustrosa, era bem resistente aos safanões das mãos que me faziam dançar.
Com o tempo e o uso, a fragilidade apodera-se de qualquer corpo e o meu não é excepção. Vão-se-me desfiando os fios, no desfiar dos dias, ao toque das Avé-Marias. Esticada à força de puxões e fricções, estou prestes a rebentar. Ai. Geme-me a alma quando a dança, cada vez mais pífia, me acusa do desgaste ao sacudir-me no chamamento para a missa (“a messe é grande e os trabalhadores são poucos”). As vibrações percorrem-me o corpo despido, dorido de tanto badalar. E escorre por mim o medo de soçobrar às mãos que me cofiam. Então, se houver um toque a rebate, depressa ficarei nas mãos de alguém.
Os sopros de uma coruja, que vislumbro por uma janela meio iluminada, minha companheira nesta noite assombrada, vêm gelar-me de frio medonho os ossos cansados; à minha volta move-se um vazio abismal; e eu, com os dedos descarnados de tanto me segurar, espero pelos compassos da aurora que me venham libertar.
Mas, se então ainda não partir, estou certa de que irão continuar a servir-se de mim, sem pensarem em me substituir. Custará assim tanto reparar que esta pobre corda, presa ao badalo do sino do campanário, está cada vez mais velha e gasta, e quase quase a rebentar?
E é então que me sinto abanar: “(a)corda”!

(M.Fa. R. - 09.11.2010)

23 novembro 2010

Pouca Terra

Entrei naquele comboio à procura não sabia bem do quê, esperando ausentar-me, mesmo que apenas por algumas horas, de uma solidão penteada e maquilhada.
Entrei e não vi ninguém. Vi. Mas não vi. Os meus olhos não pararam em quem quer que fosse. Mesmo caminhando de frente, eram só cabeças em corpos sentados. E lugares vagos – alguns. Instalei-me num, ao acaso. No lugar ao lado, junto à janela, já estava alguém. Olhei-o de relance – de óculos de sol, todo barbas e ainda cabelos – e senti-me corar, mas talvez que os óculos escuros lhe tenham ocultado o fogo do meu rosto. Deus queira, pois se não o que haveria ele de pensar? Esboçou um sorriso. Retribuí, sem que qualquer palavra se atrevesse a aflorar, apesar de os pensamentos se me atropelarem, como numa gincana de bicicletas, em que um ciclista cai e todos os outros, sem terem tempo de se desviarem, se enfaixam num feixe desalmadamente. Desconsoladamente. Que fazia ele ali, saído de um filme antigo, num comboio regional, anónimo, sozinho?
A chegada do revisor vem colocar um pouco de ordem nesta cabeça.
Há muito, muito tempo, quando eu era pouco mais do que uma criança, sonhava com um príncipe encantado como ele, naquela série, com uma voz de ouro timbrado que me fazia pular o coração. Ele desenhar-me-ia palavras que me seriam carícias.
E agora, por que é que não acontece nada?
As cores com que se pinta o mundo quando se é adolescente vão-se esbatendo com o tempo, tornando-se mais foscas, menos garridas e, por vezes, escorridas, esborratadas. Esvaídas.
Espreito-o pelo canto do olho. Parece absorto, ou disfarça.
Se fosse naquele tempo, o mais provável seria que o meu coração, cheio de acordes maiores, me tivesse afogado a voz; agora, aqui, a minha voz imerge na profundidade das décadas passadas à procura de um coração arroubado, mas também não consegue retirar dele som nem tom.
O comboio abranda a marcha e percebo que estou quase a desembarcar. Levanto-me para o corredor e o meu companheiro de viagem dá sinais de se preparar para também sair, e então dirige-se-me com aquela voz que me paralisa:
- Muito obrigado pela companhia e por me dar a beber do aroma silencioso do seu perfume.
E vai embora sem eu ser capaz de lhe dizer que, há mais de trinta anos, era ele - Sandokan - que me prendia a atenção ao ecrã.
(M. Fa. R. - 26.10.2010)

12 novembro 2010

100 Palavras… ou com poucas mais

Um dia de Formação das 10 às 17 com intervalo para almoço.
Uma única janela no aconchegado gabinete com a persiana corrida. Aconchegado – bem aconchegado – para quatro pessoas; persiana corrida para tornar o ambiente adequado à projecção. Assim não me posso distrair a ver o tempo que faz lá fora.
Ainda bem que não sofro de claustrofobia!
Sorrio. Sorrimos.
Apresentamo-nos: Manuela – formadora; Carla, Maria e Ana – formandas.
Blá, blá, blá… ponho os óculos; presto atenção ao ecrã (as imagens são sugestivas); sigo todos os passos (o dia vai de corrida sem ninguém o apanhar); coloco dúvidas; respondo a questões; troco ideias e ideais… sugestões; tiro os óculos. Sorrio.
Passou a manhã.
Pausa.
Espero.
Veio a tarde.
Sorrio. Ponho os óculos. Embalo-me em mais Marketing Social e deixo-me levar. Parece que temos de usar mais a regra dos três C – a regra de ouro para que a informação que queremos passar surta o efeito desejado – ser clara, curta e concisa. Tiro os óculos.
O dia já lá vai… Ainda foi só o primeiro dia.
Sim, um novo dia de formação fica marcado.
Sorrio.
Um dia bem formado!
(M.Fa.R. - 11.10.2010)

poderá também gostar de:

Tons Maiores: