02 abril 2011

Era Uma Vez Um Espelho



Era uma vez um espelho. Um espelho centenário (e um mundo de magia); por detrás, um ar de miragens reclusas.

A casa, escondida nos quase escombros duma aldeola semi-desabitada de Trás-os-Montes, como que ressuscita espectros em cada canto. Dois homens (pouco mais que rapazolas) tropeçam da penumbra interior, procurando descobrir, pela primeira vez, algo mais do que o que a fraca claridade da porta, que deixaram aberta, lhes permite vislumbrar. Uma réstia de sol sente-se aprisionada na fresta da portada da janela e parece teimar em querer escancará-la; incide no espelho encostado e este devolve, ao soalho, um reflexo afogueado.

Nas cercanias, por aqueles montes e vales além, as lendas têm o condão de amedrontar os incautos viajantes que as ouvem desfolhar. E estes dois, um levado pelo outro, herdeiro afortunado, apertam-se, cada qual, num receio assombrado. O vento assobia um ritmo agreste no telhado abaulado, ao mesmo tempo que as ramadas de um velho cedro batem compassadamente na parede despida, zombando dentro um eco descontente. Um morcego volteia um bater de asas aterrador fazendo soltar dois gritos aflitos de pavor. E a réstia continua lá, num chamado insistente à aproximação. A portada range, então, às mãos ávidas de luz e põe a descoberto o romântico espelho, solto do toucador, sem uma beliscadura, resistente ao século, onde o sol agora se encandeia numa baforada multicolor.
Tudo o que é centenário é merecedor de respeito. Por aquilo que já passou, por aquilo que já viveu. Pela sabedoria que adquiriu. E ainda mais quando não deixou que a vida lhe fizesse mossa. Este espelho não envelheceu. Alguém o defendeu das agressões para que retivesse as emoções e até, quem sabe, as frustrações dos olhares que nele fulgiram. Sim, novo permaneceu. Estranho…
Estranho: um espelho centenário sem, sequer, um arranhão, que destoa de uma boa parte do recheio da ampla divisão – a casa de fora – daquela casa abandonada numa imensidão. 
E o espelho reflecte nitidamente, com fidelidade, a imagem do rapaz que dele se abeira e lhe pega. Rapaz e imagem observam-se. Do fundo sai a mesma cara, da mesma forma, do mesmo tamanho; o mesmo corpo. Estranho: nada de estranho. Mil imagens escondidas deveriam, talvez, resgatar-se agora do espelho para fora. Espera: uma outra cara, de outro rapaz, aparece logo ali a mirá-lo. E, num pulo de susto a desequilibrá-lo... Era uma vez um espelho!


(M.Fa.R. - 28.12.2010)





16 comentários:

  1. Gostei da história do espelho centenário.
    Minha querida, tu sabes contar histórias como poucos. A tua narrativa é muito boa.
    Menorzinha, tem um óptimo fim-de-semana.
    Beijos.

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  2. "Tudo o que é centenário é merecedor de respeito" Muito bem Fa, que bem que por aqui se escreve.

    bjs e bom fim de semana1

    José

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  3. Gostei da descrição de sons e ambiências dessa casa "tosca e bela...", das vidas que por lá passaram e do impacto do espelho que sempre vai reflectindo o actual!
    Um texto excelentemente conseguido.

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  4. Bom texto como sempre

    num relato poético de espelhos

    que nos muitiplicam

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  5. Fa
    É maravilhosamente bela a tua história tem um certo ritmo poético e uma elegancia de mestre, e ao mesmo tempo, ressalta um respeito pelo espelho.
    Tantos anos a refletir imagens e nunca se cansou...
    Será que o teu espelho mágico refletiu vidas ou só caras e coisas?
    Gustava de continuar a ler a história do espelho...
    Beijinhos amiga
    Utilia

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  6. Olá, Fa

    Linda estória, descrita com uma sensibilidade imensa.

    Beijo

    Olinda

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  7. Todo espelho é mágico e guarda consigo segredos centenários.
    Grande história!
    Bom dia, amiga!!!

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  8. narrativa bem escrita.

    gostei do espelho centenário.

    beij

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  9. Numa frase só, em fa ou em dó:
    Narrativa poética sendo vida
    entre sonho e utopia
    nele existe a magia
    de quem tece uma sinfonia! :)

    Beijinho e xi-apertadinho e até um outro dia! :)

    (obrigada pela tua assiduidade e desculpa-me esta ausência que luto para que seja presença...ando cansadita...mas dentro do possível bem! Acredita!!):)

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  10. Um espelho com que possa ver na propria alma .
    Bjs

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  11. Gostei muito do que li, não conhecia e o último parágrafo é um remate perfeito! Lindo!!! A fotografia do espelho partido ficou uma obra de arte! UAU!

    Beijinhos

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  12. Formidável história, Fá!...
    A antiguidade... deveria ser mesmo um posto... e não algo desmerecido, depreciado... como algo de que nos devemos envergonhar... e no entanto... a sociedade... faz isto... às pessoas... lembrando-lhes as mossas... que nem sempre elas realmente sentem ter... por continuarem com todas as suas capacidades intactas... e absolutamente válidas...
    E no entanto... até para os mais novos... é-se velho... cada vez mais novo...
    Os mais novos... que deveriam ter mentalidades mais abertas... são a geração mais escrava do culto da beleza... da imagem... e do que o espelho reflecte... e mais preconceituosa... praticando o body shaming entre si mesmos... com muita convicção... e o respeito pelos mais velhos... é algo absolutamente cada vez mais inexistente... pois um cota... para eles... nem sei em que idade rondará no momento... mas a partir dos 40... creio que já se seja um potencial candidato, a tal depreciativo rótulo... quem tenha 80... nem sei... calculo que já tenha estatuto de pura carcaça em decomposição...
    Triste isso... de tanta evolução... tender sempre para uma qualquer forma de regressão... e tanta informação disponível, para as novas gerações... redundar em desrespeito, ignorância, e culto da humilhação... para si mesmos... para os outros... e em especial para os mais vulneráveis... sendo o factor idade, um aspecto, entre outros, dentro de uma mesma categoria...
    Adorei o texto, Fá... que me fez divagar, para outras áreas... para além das divisões... do tempo e do espaço... da velha casa...
    Beijinhos! Boa semana!
    Ana

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  13. Você me fez rir. Um conto bem escrito que nos leva a uma aventura de final inesperado rss. Gostei!!! Bjs.

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  14. Fá, tu escreves muito bem e nos deixas grudadas em ti até o final.Adorei mais essa história! beijos, chica

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  15. Cheira a torga o desenvolvimento da história
    Gostei

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  16. Gostei muito da seu conto que me traz este reconhecer de que tudo tem uma história. Sua forma de escrita, entre realidade e magia, o espelho centenário me tocou fundo no meu pensar. Narrativa com magia e suspense. Amei.bjsss

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«a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa – ou seja, as coisas que fazemos por obrigação, que não nos interessam, para sobreviver – e a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.»
(Edgar Morin)
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