11 janeiro 2011

Arte(s)


Tela René Bertholo 3

Não é um jogo. Nem de futebol, nem de qualquer outra modalidade desportiva. Mas há um jogador profissional de futebol e um professor de educação física metidos nesta história. Cheiro-os ao longe. É que entrar num museu não é entrar num estádio de futebol ou num ginásio; nem mergulhar numa piscina olímpica. É um mergulho, mas na arte, na história, no passado; é chamar o passado ao presente e levá-lo ao futuro. Posso assemelhar a entrada num museu à entrada numa biblioteca. Por isso, um escritor famoso, como eu, também procura raízes num museu. Já a um profissional do desporto será o desporto que o lá levará; ou a curiosidade ou, quem sabe, para acalmar alguma ansiedade.
Desta vez não podia ter sido em pior altura. Foi completamente danificado um quadro dos mais valiosos do museu. E não sei como aconteceu. Só ouvi um grande estardalhaço e, a seguir, vejo aqueles dois ali especados com cara de assustados, depois do enorme estrondo de vidro a partir.
E isto é uma coisa de que ninguém se pode rir. Como é que este aparato foi suceder? Aproximo-me a tempo de ouvir um deles dizer:
– Isto parece uma cena para os apanhados.
Ainda estou a tentar perceber, quando aparece o vigilante e nos aponta, aos três, como culpados. Digo que eu não, que nem sequer estava ali ao pé. Mas ao que ele responde:
– Se nenhum de vós assumir a culpa têm de ser os três identificados.
– Foi apenas e só o quadro que se soltou da parede. Caiu sozinho. – Encolhe-se o professor.
– Caiu sozinho? Coitadinho! Quem pensa que está a tentar enganar? Têm de vir todos à gerência do museu prestar declarações. – Responde o outro já mal-humorado.
Com aquele tom de voz não pode haver recusas nem excepções. E a destruição de um quadro valioso daqueles não permite contemplações.
Fiquei deveras preocupado: achei que ainda ia pagar pelo que não fiz. Mas antes de ser apurada qualquer responsabilidade, empertiga-se o jogador e diz:
– Eu pago o prejuízo.
Ora aí está alguém com pouco juízo. Mas com dinheiro, benza-nos Deus. Não há um culpado. Há um herói. O que também é arte. Não sei se é isso que me dói, ou se entender que ser famoso mas não ter dinheiro é ser do mundo dos fracos.
Mas não há que desanimar: agora é hora de também ter arte para apanhar os cacos.

(M. Fa. R. - 02.11.2010)

Texto também publicado em Escrita Criativa - Campeonato Nacional
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16 comentários:

  1. Pouca dignidade resta quando nos limitamos a apanhar os cacos...
    (Um bom texto, Fa!)

    Beijo :)

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  2. Amiga Fa .
    Isso foi mesmo um problema.
    Mas... talvez tenha partido só o vidro, o vidro é frágil...
    Por dentro o quadro talvez tenha ficado intacto, a obra lá está.
    Retiram-se os cacos pega-se na obra de arte e coloca-se num novo quadro.

    As coisas deste mundo são mesmo frágeis... já tinha dado conta disso.
    Espero que não seja nada que não se possa resolver.
    Beijinhos da Utilia

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  3. Há arte em tudo, ou quase tudo o que fazemos...
    A maior riqueza é a que está em nós. Quem tem essa riqueza não se liga muito à materialista, é forte, famoso, inteligente e tolerante; é em tudo contrário à ética do seu tempo e perdura no tempo.
    O materialista (rico) possui um mundo ao qual só ele se enquadra. É fraco, egocentrista, prepotente, mentecapto e distópico... Levamos diariamente com eles, seja na rádio, na TV...
    Acho que se faz uma ideia deturpada quanto ao conceito, do forte e do fraco, da inteligência ou falta dela, do respeito e do medo... O mundo actual está para o adaptado e neste mundo ser-se adaptado, não é sinónimo de inteligência mas sim atropelo de tudo o que é valor humano e vida em sociedade...

    Gosto do texto Fa!

    beijo

    José

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  4. Uma obra de arte destruída não se pode pagar em dinheiro.
    Porque é uma perda irreparável.
    Querida amiga, boa semana.
    Um beijo.

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  5. Já tinha saudade de por aqui passar
    li tudo que consegui...
    parei aqui...
    nada paga o preço da Arte em nós
    e muito menos o que representa
    e o mundo tem desse conceito
    posto nos olhos falta de respeito
    e outras coisas que nele apresenta...
    dignidade vai faltando
    e o mundo se baralhando...

    (Gostei menina musical :)
    já te vi noutro cantinho
    desculpa o meu silêncio
    mas sabes que agora bailo
    muito rapidinho
    no meio de menina e menino
    que vai dando sonoro hino!
    Voltarei sempre que possa
    pois gosto do teu espaço
    tomara eu não ter embaraço!)

    beijinhos

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  6. eu gostei do texto e gosto da maneira como conduz a sua escrita.

    não gostei de quando o jogador disse:

    -eu pago!

    queria outro desenrolar...

    deixo um beij

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  7. Bem... pelo menos na ficção há soluções!
    Gostei da forma bonita como nos conduziste a um final imprevisto!

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  8. É grave danificar uma obra patente num museu. Beijo.

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  9. Mais um texto admiravelmente bem construído, que nos prende a atenção do princípio ao fim... e com pertinentes e assertivas, conclusões finais!...
    E que me parece... ter ganho um campeonato!... Parabéns, Fá!!! Não tinha ideia!... :-D
    Beijinhos
    Ana

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  10. Textos vibrantes e muito interessantes...
    Por onde andará o AC...
    Beijinho
    ~~~~

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  11. Muito bom. Mas por vezes não é só apanhar os cacos....
    Boa semana

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  12. Se eu pudesse escrever textos tão perfeito e lindo viverei no sétimo céu
    Abraços

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  13. Gostei muito do texto que merece apreciação em vários sentidos. A destruição de uma obra de arte não pode ser compensada por dinheiro. Sempre há quem pense diferente, apenas porque o tem. Não conhece o precioso significado de uma obra de arte. Bjs.

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  14. Nuito boa história e nos reporta as diferentes formas que, cada um com seu caráter ou valores, busca resolver as questões ou a vida.
    Gostei muito.

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  15. Um texto que muita gente deveria ler...

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«a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa – ou seja, as coisas que fazemos por obrigação, que não nos interessam, para sobreviver – e a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.»
(Edgar Morin)
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